Cinema com Rapadura

Críticas   segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Bingo: O Rei das Manhãs (2017): conhecendo o Bozo por trás das câmeras

A cinebiografia conta a trajetória clichê do artista que prioriza o trabalho, sexo e drogas em detrimento da família. Contudo, o subtexto do anonimato, a ótima atuação de Vladimir Brichta e a formidável estreia do montador Daniel Rezende na direção são virtudes do longa.

Se o filme é sobre um palhaço, é comédia ou terror? “Bingo: O Rei das Manhãs” tem alguns momentos de comédia, mas é um drama com bastantes virtudes e que pode surpreender um espectador sem grandes expectativas.

O filme é uma cinebiografia inspirada na vida real de um dos intérpretes do palhaço Bozo (adaptado na película para Bingo), Augusto Mendes (nome modificado), que fez enorme sucesso na televisão brasileira na década de 1980. Uma trajetória que foi da ascensão ao declínio.

É justamente esse o grande problema do longa: não é nada original. Um artista que se submete a um trabalho que não o satisfaz e que, ao alcançar o estrelato, prioriza o trabalho, o sexo e as drogas em detrimento da família. Quantos se encaixam nessa descrição? A diferença é que Augusto era brasileiro e que seu público-alvo era o infantil. Ainda assim, é a trajetória clichê do artista, vista em incontáveis outras cinebiografias.

Como estudo de personagem, o roteiro bate muito na tecla trabalho, sexo e drogas versus família. Ele sempre foi um pai amoroso, ainda que nem sempre responsável – afinal, levar o filho ainda criança para o set de um pornochanchada é inadmissível. Augusto começou nesse falecido gênero cinematográfico brasileiro, encontrando em Bingo a oportunidade que queria para mostrar sua arte. Sua dedicação é inegável, incluindo cenas, inspiradas no francês “Chocolate”, de treinamento com um palhaço mais experiente – encantadora participação especial de Domingos Montagner (de “De Onde Eu te Vejo”). Com sagacidade, o script critica a hipocrisia do público brasileiro: para alavancar a audiência, foi necessário colocar no programa infantil a “cantora e dançarina” Gretchen (Emanuelle Araújo, de “S.O.S. Mulheres ao Mar”), que contribuiu com o seu “talento”. É o retrato dos valores da “família tradicional brasileira”, que já mantinha o machismo tão enraizado que era camuflado.

Quanto à equação “mais sexo, mais drogas, menos família”, não há nada de diferente do que já foi visto em outras produções. Por outro lado, Augusto sofre uma crise existencial: ele é um ilustre desconhecido. Em razão de uma cláusula contratual, a “identidade secreta” de Bingo não poderia ser revelada, pois ele não era encarado apenas como um palhaço, mas uma marca. Augusto era um anônimo, Bingo, um fenômeno. Um não era completo sem o outro: o ator caiu como uma luva para o papel de palhaço; o palhaço trouxe a satisfação profissional que o ator tanto procurava. Augusto tinha um “espírito parnasiano”: sua mãe era uma célebre atriz (vivida pela ótima Ana Lúcia Torre, de “Um Tio Quase Perfeito”) e lhe ensinou o valor da arte – o que ele aprendeu tão bem que recusou o papel de “vaso” em uma novela em uma grande emissora, enxergando em si potencial imensurável. E ele tinha razão: mesmo que com maquiagem, os holofotes eram dele.

Nos momentos mais introspectivos, guardadas as devidas proporções, a referência é “Birdman”, com uso intensivo de contraluz, planos mais longos e exaltação do protagonista. Vladimir Brichta (de “Um Homem Só”) encarna de maneira excelente o papel (na verdade, os dois papéis, de Augusto e de Bingo), alternando com maestria a alegria do palhaço, o amor do pai e a frustração do indivíduo. Sem pudor para expor o próprio corpo – incluindo nudez, justificando a censura, com as cenas de sexo e uso de drogas –, o ator sai de si e vive uma nova persona. Leandra Leal (de “O Rastro”) não interpreta uma personagem muito rica, pois Lucia é apenas a diretora linha-dura dentro do estúdio, e uma religiosa ortodoxa fora. Porém, o filme é de Brichta.

Surpresa positiva é o trabalho de Daniel Rezende na direção: originalmente montador (inclusive indicado ao Oscar por “Cidade de Deus”), para uma estreia, o resultado é formidável. Três sequências merecem menção especial: quando Lucia e Augusto conversam em um restaurante, a cena é filmada como two-shot lateral, porém, quando é necessário mudar a perspectiva, a câmera é colocada atrás dela, transitando do imparcial ao parcial; há um plano holandês em um momento em que Augusto tem uma decepção, seguindo por um corredor escuro, em silêncio, com as luzes se apagando, como uma caminhada para as trevas; quando Augusto e sua mãe simulam uma encenação melancólica, ao final, ela apaga a luz do retrato dela, jovem, deixando ele na penumbra, seguindo por onde há luz no final – nesse caso, a união entre simbolismo e estética é brilhante. Algumas cenas são desnecessárias (como a dança dos três palhaços), ou mesmo algumas técnicas (como o slow motion na cena do carro), mas nada que prejudique a obra.

O que fica da produção é um diretor muito promissor para o cinema nacional e um ator no seu auge. O que é contado é pura curiosidade, em um roteiro que em nada chama a atenção. Um filme que faz rir um pouco com o palhaço, mas que emociona mesmo quando ele tira a maquiagem.

Diogo Rodrigues Manassés
@diogo_rm

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