Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 18 de maio de 2017

O Rastro (2017): o terror vence o preconceito

Com uma atmosfera claustrofóbica e qualidades técnicas impecáveis, este longa de horror inteiramente nacional mostra que pode-se fazer cinema de gênero com muita competência no nosso país.

É quase um desserviço dizer que “O Rastro” é um filme de qualidade tão exultante que nem parece ser um filme nacional. Essa alegação, feita por muitos diante do trailer do longa, só evidencia a completa falta de conhecimento e percepção do tipo de produção que pode ser realizada no nosso país. Existem excelentes longas de terror no Brasil e muitos deles passam longe do alarido e do reconhecimento – internacional – de um “Zé do Caixão”. “O Caseiro” de 2015  e “Mangue Negro” de 2008, são excelentes exemplos de trabalhos de qualidade, que não conseguiram chegar ao mainstream. Eis que agora em 2017, a multifacetada produtora Malu Miranda, que coleciona sucessos premiados como “Tropa de Elite 2” e “Mato sem Cachorro”, resolve fincar o seu pé no gênero e arromba a porta com um filme surpreendente.

Na trama, com o intuito de se reeleger, o governador do Rio de Janeiro ordena o fechamento de diversos hospitais públicos “sucateados”. Cabe ao médico e funcionário do governo João (Rafael Cardoso, de “Olhar de Nise”, em atuação assombrosa) fechar o principal deles e para isso, é necessário que todos os pacientes sejam removidos em um mesmo dia. Após a promessa de que cuidaria do translado de uma menina em especial, esta simplesmente desaparece durante a remoção e faz com que o médico entre de cabeça em uma espiral de paranoia, sobrenatural e loucura, que só é amenizada quando ele está próximo de sua esposa grávida (Leandra Leal, de “O Lobo Atrás da Porta”, mais uma vez demonstrando seu extremo talento). Entregar mais seria estragar a experiência de acompanhar a trajetória descendente do personagem, porém é importante ressaltar que o conteúdo do longa é muito mais profundo do que observamos regularmente nos filmes de terror convencionais.

Tecnicamente a obra é impecável. Desde o intrincado design de som, à inventividade do roteiro de André Pereira (“Mato Sem Cachorro”) e Beatriz Manela, até o engajamento das tomadas e enquadramentos, tudo isso é passível de grande exaltação. Nada é feito de maneira simplista ou convencional. O diretor estreante J.C. Feyer parece ter total controle de seu filme e o administra perfeitamente. Se existem convenções aos clichês e aos manjados sustos, elas aparentam estar lá somente para atrair um público sedento pelos manjados filmes americanos e que poderiam renegar artifícios que elas não estejam habituadas. O hospital em si é praticamente um personagem. A caracterização da locação é tão impressionante e absurda – trata-se de um hospital desativado de verdade, que precisou ser “limpo” para abrigar as filmagens – que obstante das figuras fantasmagóricas que o habitam e o cercam, já é um algo a se temer… e muito!

Infelizmente existem algumas coisas que incomodam no longa, como diálogos extremamente explicativos ou os já citados clichês, que realmente parecem ter sido colocados ali de propósito para agradar ao público adolescente cativo. Estes são detalhes que atravancam e atrapalham o bom andamento da história, contudo, o que mais compromete o resultado final é o próprio final em si. A solução encontrada para encerrar a trama vem de maneira tão excessivamente brusca e sem explicação prévia, que diminui a força da mensagem contida nela mesma.

“O Rastro” é um filme de qualidade excepcional que, se não tivesse optado por fazer concessões em seu enredo no intuito de tentar arrebatar um público maior, já nasceria como um clássico do gênero terror. Não que tais falhas o rebaixem a uma obra menor, longe disso. Porém fica aquela sensação de que, se não houvesse o tão temido preconceito das plateias brasileiras com filmes nacionais, principalmente com os de gênero, algo ainda muito mais poderoso e impactante poderia ter visto a luz do dia.

Rogério Montanare
@rmontanare

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