Cinema com Rapadura

Críticas   sexta-feira, 03 de março de 2017

O Apartamento (2016): a vingança dos outros

Mais uma vez escrutinando as camadas da classe média de seu país, o realizador apresenta uma obra complexa que aproxima, pelo drama, as culturas iraniana e ocidental.

Nos últimos anos, o cineasta Asghar Farhadi tem se firmado como o mais proeminente cronista da cultura iraniana. Suas obras mais recentes, como o vencedor do Oscar “A Separação” (2011) e “O Passado” (2013), apresentam variações de um mesmo tema: reflexões sobre os dramas de uma sociedade predominantemente de classe média, modernizada pelas influências ocidentais, mas que mantém certas idiossincrasias históricas a partir de uma ética religiosa conservadora, que delimita direitos a partir do gênero e segrega certas formas de interação social. Com “O Apartamento”, seu mais recente filme, o realizador segue pelo mesmo caminho, mostrando quanta complexidade é possível extrair de uma reflexão detida sobre as multicamadas e contradições culturais de uma sociedade.

Emad (Shahab Hosseini, “A Separação”) é um professor e ator de teatro que estrela com sua esposa, Rana (Taraneh Alidoosti, “Procurando Elly”), uma adaptação da aclamada peça de Arthur Miller “A Morte do Caixeiro Viajante”. Quando seu prédio é ameaçado por uma construção vizinha e eles são obrigados a mudar de casa, aceitam emergencialmente a indicação de um amigo e alugam um apartamento exótico, na cobertura de um prédio residencial, que guarda um segredo. Uma noite, quando Rana espera pela chegada do marido, um desconhecido invade a casa e a agride. A partir daí, a esposa tem que lidar com o trauma, enquanto o marido embarca numa busca ensandecida por vingança.

Como em suas obras anteriores, o roteiro sai mais uma vez de suas mãos e a realização lhe rendeu novas indicações ao Globo de Ouro e Oscar na categoria de filme estrangeiro. Da mesma forma, mais uma vez Farhadi lança sua lupa sobre as relações familiares, os dramas cotidianos e as atividades comezinhas de pessoas comuns, interessado nas possibilidades de aprofundamento das dimensões éticas, valores e medos dessas pessoas ordinárias. Contudo, oferecendo destaque como nunca antes dado em sua filmografia, o diretor acentua as assimetrias das relações de gênero numa cultura marcada por um tradicionalismo histórico. Para isso, constrói um arco bastante complexo na relação entre marido e esposa, inserindo também, ao longo de toda a trama, analogias sobre as relações entre homens e mulheres, como a classe só de garotos onde Emad é professor e a mãe divorciada que atua junto ao casal (que, não à toa, não tem filhos).

Farhadi mergulha, assim, ainda mais fundo do que havia chegado em seu premiado “A Separação”, porém com um pouco menos de vigor. Embora não perca nada em estrutura e mantenha um nível altíssimo nos textos e atuações, parte do desenrolar do roteiro parece artificial, criando surpresas improváveis e idas e vindas um pouco cansativas.

Econômico, restringindo-se mais uma vez a poucos cenários e personagens, vale a pena destacar, contudo, o excelente trabalho cenográfico e de direção de arte, especialmente no núcleo teatral. É nas estruturas de madeira no palco e sob a pesada maquiagem teatral que vemos a relação entre marido e mulher deteriorar-se. Espelhando o texto dramatúrgico, assim como o caixeiro viajante morre nas páginas de Miller, há uma morte simbólica do marido no filme que justifica o choro da esposa na última encenação da peça, subvertendo o texto dramatúrgico onde “a mulher não derrama uma só lágrima” diante do corpo do caixeiro Willy Loman – complementarmente, há também a morte de um marido de forma muito mais literal, no ápice da narrativa.

Os coadjuvantes em torno desse casal destacam-se por sempre ressaltarem a dicotomia entre homens e mulheres, nunca representando uma conexão harmônica entre ambos. Muitas vezes isso se dá por meio das idades dos personagens, ora muito velhos, ora bem mais novos, mas também na representação da clássica divisão de “tarefas masculinas”, como carregar caixas de mudança ou manobrar um carro. Quanto a esse último ponto, aliás, é impressionante o salto que o personagem de Emad dá a partir da agressão à esposa, tornando-se uma figura desagradável e simbolicamente tão violenta quanto o agressor. Justamente aí reside um dos pontos mais complexos (e facilmente mal interpretados) do intricado roteiro de reflexões morais de Farhadi: embora a vítima seja Rana, é Emad quem parece mais “agredido” pelo episódio, e isto porque inserido numa cultura em que os valores de honra estão acima da pura materialidade. É Rana quem apresenta os hematomas e a bandagem na cabeça, porém é Emad quem perde a cabeça diante do crime e mostra-se quebrado pelo acontecimento. Pela câmera de Farhadi, composta junto à cinematografia de Hossein Jafarian, a mulher é renegada ao segundo plano do frame, enquanto o marido pula em close para o primeiro plano, onde o destaque é só dele.

Duvido, contudo, que alguém que já se provara um realizador de mão cheia tenha criado essa dinâmica aleatoriamente. O incômodo que o protagonismo de Emad e sua grosseria cega à esposa é a ferramenta com que Farhadi parece problematizar certas questões de sua cultura, de um jeito todo próprio, sutil e ainda assim impactante como sempre lhe coube.

Trabalhando sempre com os mesmo atores e equipe, o realizador é, ao lado do sempre perseguido Jafar Panahi (“Taxi Teerã”), o nome mais pungente do cinema vindo do Oriente Médio nos últimos anos. Suas obras são complexas, não por abordarem os assuntos mais polêmicos que têm se desenrolado na região, mas por dar destaque às profundas questões de tantos homens e mulheres que vivem ali. Mostram ao mundo, assim, que apesar das diferenças e distâncias, os dramas e emoções dessas pessoas têm muito a ver com os nossos, ocidentais, em suas complexas dimensões de amor ou de dor.

Vinícius Volcof
@volcof

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