Cinema com Rapadura

Críticas   sexta-feira, 03 de março de 2017

Redemoinho (2016): quando o melhor da televisão e do cinema se encontram

Ousando em sua estreia cinematográfica, um diretor experiente do meio televisivo constrói um projeto visceral, que presta homenagem ao seu estado natal e oferece boas perspectivas ao nosso cinema.

Embora possa passar despercebido pelo grande público, resumido a um nome em letras miúdas que aparecem em meio às aberturas musicais das novelas, José Luiz Villamarim é a figura por trás de algumas das produções televisivas mais populares dos últimos anos, como o icônico primeiro episódio de “Avenida Brasil” (2012), a recente novela das onze “O Rebu” (2014) e a minissérie “Amores Roubados” (2014), todas na TV Globo. Agora, aos cinquenta e quatro anos de idade e vinte e três de carreira, o diretor estreia seu primeiro longa-metragem e aproveita para recolocar Cataguazes, cidade do interior de sua Minas Gerais, no centro do cinema nacional.

A história é intricada e complexa, cheia de nuances que são inferidas e, por isso mesmo, apenas perceptíveis por meio da total imersão, portanto, desligue o celular e preste atenção: pela linha do trem que transporta a bauxita cidade afora, vemos Toninha (Dira Paes, “Dois Filhos de Francisco“) preparando a humilde ceia natalina para o marido Luzimar (Irandhir Filho, de “Tatuagem”), que volta para casa no compasso lento de sua bicicleta, depois de cumprir diligentemente a jornada de trabalho numa barulhenta fábrica de tecelagem. Cindindo as estradas na rapidez de seu carro, vem chegando a Cataguazes Gildo (Júlio Andrade, “Não Pare na Pista”), vindo de São Paulo em visita à mãe (Cássia Kiss, “Chega de Saudade”) para as festas de fim de ano. Partindo de pontos muito diversos, os dois homens cruzam-se fortuitamente, nos revelando que partilham lembranças traumáticas da infância que passaram juntos.

Realizando um trabalho primoroso com o elenco de poucos, mas excelentes atores e atrizes, Villamarim explora a adaptação bem trabalhada de George Moura sobre o romance “Inferno Provisório”, de Luiz Ruffato, em sua dimensão mais profunda: uma reflexão sobre os encontros, desencontros e reencontros da vida. A discussão central entre os dois protagonistas – que apesar de escorregadas pontuais, entregam-se profundamente às exigências do forte texto – é quanto a uma dúvida cruel, ao mesmo tempo irrefreável e irrespondível, de querer saber quem se deu melhor: o amigo que foi para a cidade grande ou aquele que permaneceu no mesmo lugar.

A aridez da pobreza de Cataguazes é destacada por composições precisas que encaixam os personagens em bem elaboradas molduras de paredes rachadas, chãos de terra e outras particularidades de um cenário inóspito, similar ao trabalho que Julia Murat realizara na fictícia (porém tão desoladora quanto) Jotuomba, no ótimo “Histórias que só Existem Quando Lembradas” (2011). Em parceria com um dos maiores craques da cinematografia nacional, Walter Carvalho (“Febre do Rato“), o trabalho de Villamarim parece um tributo aos icônicos takes do diretor japonês Yasujiro Ozu (“Era Uma Vez em Tóquio”), porém com o estilo e a palheta particulares do interior mineiro. A noção de profundidade salta aos olhos, preenchendo a tela com informações nos três níveis e câmeras em locais improváveis, que sabiamente garantem o máximo de aproveitamento e são utilizados como ferramenta para se contar a história. As cenas sobre a ponte, recorrentes ao longo da narrativa, exemplificam o incrível feito, de inegável domínio técnico e personalidade estilística como poucas vezes visto no cinema, de modo geral.

A centralidade que oferece a Cataguazes também não pode ficar de lado. O mineiro Villamarim parece esforçar-se para retomar certo protagonismo da região que já foi palco de avanços técnicos importantes de nosso audiovisual e local de alguns dos trabalhos dos expoentes da profissão no país, como Humberto Mauro (“Ganga Bruta”) e o diretor de fotografia italiano Pedro Comello. Esses anos de ouro da cidade datam dos anos de 1920 a 1930 e ficaram conhecido como Ciclo de Cataguazes. Agora, com seu cenário inóspito e degradado, ela volta a ser explorada pelas lentes do cinema, não apenas pelo filme de Villamarim, mas por outras produções que vem sendo realizadas na região desde 2015. Em “Redemoinho“, a cidade torna-se personagem de uma narrativa sofrida e desoladora, em que sua parca estrutura e pobreza são utilizadas como metáfora emocional de relações interrompidas e personagens alquebrados.

Se a trama começa meio arrastada, incorrendo num erro comum dos “filmes-cabeça” de pedir alto investimento do espectador (pelo menos de início), logo o enredo ganha ritmo e segue numa melodia fluída de interações entre bem desenvolvidos personagens e avanços dramáticos complexos. Quando Luzimar e Gildo finalmente encontram-se a história ganha corpo e deslancha num turbilhão espiralado que remonta ao passado, mas revela suas consequências no presente dessas personagens e de quem está m seu entorno. Esse encontro, inclusive, é enriquecido pelo bom desempenho de outra atriz bem conhecida do público televisivo:Cássia Kiss (“Chega de Saudade”), que faz Marta, a mãe de Gildo, e é quem assume com mais naturalidade a persona de interiorana mineira. Já o pernambucano Irandhir Santos, ainda que mantenha o talento de sempre, nas cenas iniciais se esforça em demasia no sotaque local, mas parece esquecer-se completamente dele nos momentos de interação mais enérgica.

O do eterno retorno nietzschiano é fabulosamente construído por uma melodia arranhada que ressoa em tela e puxa os personagens de volta aos seus traumas da infância, em memórias embaçadas pela chuva e pelo tempo e reprimidas pela culpa que ensurdece Luzimar e transforma Gildo num esnobe. Contudo, logo eles são jogados novamente ao presente de dor e arrependimento, onde esses homens têm apenas uma noite (e justo a véspera de Natal, que coincidência!) para tentar, de alguma forma, renascerem puros de seus inexpugnáveis pecados.

Nessa trama natalina, a Toninha de Dira Paes é uma espécie de Maria, a bíblica, mãe do Salvador. Uma representação deveras ousada, vale dizer, quando sabemos mais sobre o passado da personagem. Ela é quem carrega no ventre a Boa Nova, pacientemente à espera do marido que parece perdido pelos descaminhos da vida e que, com suas infinitas ligações, tenta como que despertá-lo de um sonho ruim. Infelizmente a trama comete um estrondoso erro em relação a ela (e também à personagem de Cássia Kiss, em menor escala), à medida que incorre numa prática infelizmente ainda comum nas histórias protagonizadas (e escritas) por homens, de secundarizar as personagens femininas de modo a transformá-las em meras escadas aos dramas masculinos. O próprio arco da história de Toninha, que tem seu ponto alto já no fim da narrativa, parece construído apenas como ferramenta para impactar a honra do marido, mais do que desenvolver sua própria personagem. Desperdiçando a oportunidade de complexificar sua narrativa utilizando duas ótimas atrizes, completamente entregues ao projeto, Villamarim deixa escapar por entre os dedos o elemento que faria de seu filme uma obra perfeita.

Ainda assim, o diretor realiza, em sua estreia cinematográfica, um feito mais difícil do que parece para os realizadores brasileiros: unir o que há de melhor das nossas internacionalmente reconhecidas novelas, com a potência de nosso audiovisual. Contando uma história verdadeiramente brasileira – mas que de modo algum hermética ao público estrangeiro –, Villamarim e sua equipe mostram que essa união é possível e talvez o caminho mais promissor às nossas produções. Desse modo, tal qual a história de Cataguazes, com “Redemoinho” o diretor recorre à tradição para construir uma nova perspectiva de futuro.

Vinícius Volcof
@volcof

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