Cinema com Rapadura

Críticas   sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Aliados (2016): uma excelente espionagem vintage

Partindo de um argumento nada original, o filme já começa em descrédito. Entretanto, a produção é feita com muito esmero e poucas falhas, destacando-se a atuação de Marion Cotillard, a direção de arte e o figurino.

Nazismo, de novo? A Segunda Guerra é terreno fértil para a sétima arte, contudo, a fartura de exemplares tem tornado a época mais e mais saturada no cinema. O mínimo que o público exige, então, é competência na execução. “Aliados” felizmente consegue.

O protagonista do filme é Max Vatan (Brad Pitt), um espião enviado a Casablanca (Marrocos) para uma missão genocida cujo alvo principal era um embaixador nazista. Durante a tarefa, ele se apaixona pela colega francesa Marianne Beausejour (Marion Cotillard), também espiã. Porém, a vida de espionagem pode deixar segredos que impedem um romance feliz.

A sinopse oficial – o trailer ainda mais (melhor evitá-lo!) – revela uma cena que facilmente seria considerada spoiler, razão pela qual melhor explicar o enredo de maneira mais genérica. Basta entender que se trata de um longa de espionagem vintage, ambientado no início de década de 1940 e contextualizado na Segunda Guerra, tendo o romance como mola propulsora da trama. Não por outra razão, a fita perde pontos já no argumento, faltando-lhe inovação. O assunto parece inesgotável, todavia, se a abordagem não for criativa (como “O Filho de Saul”, subversivo na filmagem e original no enredo), dificilmente o filme se torna marcante.

O roteiro tem três atos bastante distintos, com uma enorme queda de qualidade no segundo, após um primeiro plot twist. O primeiro é dominado por Marianne, não à toa, é o melhor. Isso porque a personagem é construída por camadas, enriquecida pelo olhar enigmático de Cotillard. Enaltecer o trabalho de atuação da francesa é ratificar uma obviedade: mais uma vez, ela arrasa em um papel que lhe exige talento dramático, cômico (a piada sobre a trava de segurança é ótima!) e de ação, comandando as ações na melhor parte da película. Já no segundo ato, quem tem mais tempo é Max, vivido por Pitt, distante da excelência da francesa. Ele convence no papel, mas derrapa nos momentos dramáticos – todavia, não se pode negar que a narrativa adentra em um território previsível e pouco envolvente. Cotillard e Pitt têm uma química que simula Bergman e Bogart, em especial pela aura de star system, aproximando-se mais de “Sr. e Sra. Smith” (numa versão mais madura e séria). O elenco de apoio vai bem, uma pena desperdiçarem August Diehl (“Viva a França!”) com um papel pequeno.

Também na estética os dois primeiros atos são bem distintos. No primeiro, paira uma fotografia amarelada (afinal, é o Marrocos!), com cenários de tons pastéis (habitam uma casa com parede de cor amarelo queimado, luminária âmbar e chão quadriculado em castanho avermelhado e dourado, alternadamente) e figurino que não foge desse norte (destaque para uma cena em que ela usa chapéu de palha e camisa off-white – como não lembrar Ingrid Bergman? – e ele um terno acinzentado). No segundo ato o paradigma é outro: plot e visual iniciam com uma Londres de cores vivas e alegres, para depois transformar “Aliados” em um filme noir, prevalecendo uma fotografia noturna. Discretamente, a fotografia de Hitler na parede é esquecida, dando lugar a Churchill. Na terceira parte, Cotillard encarna a femme fatale, com vestido escarlate e depois um casaco avermelhado. Que direção de arte formidável! Que figurino estonteante!

O comando de Robert Zemeckis costuma ser confiável (de clássicos como “De Volta para o Futuro”, “Forrest Gump” e “Náufrago” a ótimos recentes como “O Voo” e “A Travessia”). O texto não prima por criatividade, porém, Zemeckis consegue misturar suspense (o prólogo é excelente nesse viés) com romance e ação com humor (o ataque repentino de Max a um soldado alemão usando o fora de campo é tão inusitado que chega a ser cômico). Com inteligência, as cenas de sexo não são apelativas (tampouco as de batalha), uma delas, inclusive, é dotada de um lirismo exemplar, com a câmera fazendo movimento circular ao redor do casal em um ambiente fechado enquanto ocorre uma tempestade de areia fora (metáfora do amor efervescente e do desejo até então reprimido). Algumas cenas são inverossímeis e/ou desnecessárias, como a do parto (muito melhor a elipse seguinte, inteligível e sutil na medida certa), entretanto, os planos simbólicos evidenciam que Zemeckis é bom (por exemplo, a sequência da escada e do corredor, metáfora do emaranhado complexo que se anuncia).

Argumento e narrativa são inegavelmente despidos de originalidade em “Aliados”, o que lhe impede de alcançar a grandiosidade que almeja. Mesmo os subtextos sobre confiança (tema mais pujante), voyeurismo (não é mesmo, Mme. Petit?) e sobre o Zeitgeist do Velho Continente (lesbianismo e festas regadas a sexo e bebidas eram vistos com normalidade, já hoje…) não embalam nada que atinja um nível inesquecível. Não obstante, a produção é feita com muito esmero e poucas falhas.

P.S.: o filme transita entre dois idiomas, inglês e francês. O trabalho feito na legenda se mostra aquém do ideal, ignorando trechos (quando Marianne fala frivolidades com amigos, o discurso não é essencial, contudo, se está audível, deveria constar na legenda) ou olvidando a recomendável tradução teleológica (“to be my wife” ficaria melhor como “para se casar comigo”, ao invés de “como minha esposa”, por exemplo).

Diogo Rodrigues Manassés
@diogo_rm

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