Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Manchester à Beira-Mar (2016): o nó górdio do luto

Uma história pequena, mas emocionalmente carregada, conduzida com um tom minimalista e com poderosos nomes em seu entorno tem de tudo para fazer sucesso em premiações.

Hollywood é uma espécie de feudo moderno onde imperam relações familiares e de amizade garantem parte do sucesso ou fracasso de alguns nomes, à despeito do puro talento. É por isso que todos os anos cartas marcadas surgem na época das premiações, incentivados por amigos poderosos, produtores ou estúdios que financiam sua glória até o tapete vermelho. Nesse ano, o caso mais pungente é o de Casey Affleck: o irmão menor de Ben Affleck, vencedor do Globo de Ouro de melhor ator em drama por seu desempenho em “Manchester à Beira-Mar”, de Kenneth Lonergan.

Na trama, de autoria do próprio diretor, um homem introspectivo com rompantes violentos trabalha realizando serviços diversos de manutenção em Boston. Quando seu irmão mais velho (Kyle Chandler, de “Friday Night Lives”, em atuação carismática que merecia maior reconhecimento) morre, vítima de uma doença cardíaca crônica, o rapaz se vê indicado como tutor do sobrinho adolescente, sendo obrigado a voltar à Manchester, cidade da qual ele guarda tristes memórias. Repleto de momentos silenciosos que retratam a apatia melancólica do personagem de Affleck, o texto caminha por um novelo embaraçado de nós psicológicos e emocionais que impedem o rapaz de relacionar-se intimamente com qualquer pessoa e superar seu luto.

Experiente na roteirização, já tendo sido indicado ao Oscar na categoria em duas ocasiões (“Gangues de Nova York” e “Conte Comigo“), porém ainda iniciante como diretor, perceptível por alguns takes estranhos e uma edição picotada, Lonnergan aposta numa emotividade em suspensão onde o passado do protagonista é revelado pouco a pouco em flashbacks que surgem gradualmente durante a jornada de sepultamento do irmão. Desde sua chegada no hospital e o reencontro com quem parece ser velhos conhecidos, nota-se um tratamento formal e afastado para com ele. Vemos, assim, que seus enfrentamos em Manchester superam a simples morte de um ente querido – retratada em uma exemplar cena no necrotério do hospital centralizada em Affleck diante do corpo do irmão –, sendo também preenchida por um mal-estar que todos parecem sentir ao seu lado. Logo descobrimos que seu personagem é rodeado pela morte, mas para além desse espectro trágico de sua biografia há o sofrimento humano de um homem que, diante da incapacidade de superar o luto, abandona-se ainda em vida.

De fato, o Lee de Affleck está mais morto que seu irmão, retratado sempre de forma vívida e cheia de energia nos flashbacks, ao contrário do rapaz, abandonado à mera sobrevivência de uma rotina apática e traumatizada, recaindo constantemente em brigas de bar que servem como atos punitivos para expurgar a culpa que carrega. Diante do sobrinho de quem agora é tutor (ótima performance indicada ao Oscar de Coadjuvante do jovem Lucas Hedges, de “Moonrise Kingdom”), vê-se forçado pelas trágicas circunstâncias a retomar algum rumo de vida, impedido de jogar-se novamente na solidão deprimida de sua vida em Boston. Assim, seu irmão mais velho serve, com sua morte, como o guia de sua jornada para tentar recuperar o sentido da vida, a força motriz que o faça viver ao invés de meramente sobreviver na jaula de aço dos traumas passados. A relação entre os dois, inclusive, parece regida por uma economia própria, uma vez que o primogênito ajudou o caçula na fase mais crítica de sua vida e agora o rapaz tem a chance de retribuir o favor.

Engana-se quem espera, contudo, que a história opte por tomar o caminho mais ortodoxo. Brincando com o simbolismo dos nós náuticos usados no barco da família Chandler, a mensagem do roteiro é sensata e realista ao mostrar que alguns traumas não são simplesmente superados, assim como alguns nós não são possíveis de desvelar. O desenvolvimento da narrativa, aliás, condiz bastante com a forma naturalista que Lonnergan decide imprimir na obra, sem espaços para malabarismos técnicos e focando puramente no texto e nas interpretações, embora às vezes lhe falte vigor ou habilidade. Por seu trabalho, o realizador recebeu duas indicações ao Oscar, uma bastante questionável para a categoria de direção e outra merecida e esperada por seu trabalho no roteiro.

Além das já mencionadas boas performances de Kyle Chandler e Lucas Hedges, vale a pena também citar dois nomes menores no elenco que não passam desapercebidas em suas aparições, uma positivamente e outra nem tanto. O primeiro é de Michelle Williams (“Sete Dias com Marilyn”), como a ex-mulher do Lee, que ajuda a lhe dar profundidade ao agregar dimensões tanto romântica quanto trágica ao personagem. Toda sua potência dramática se destaca especialmente numa pequena cena quase ao final da trama, que lhe é entregue como um presente e logo se torna uma das mais potentes da narrativa, graças também à boa troca com Affleck e a mise en scene coordenada pelo diretor. A outra atuação é de Matthew Broderick (o eterno Ferris Bueller de “Curtindo a Vida Adoidado”), que faz a audiência tomar um susto com sua aparição, por destoar do tom e do universo de personagens do resto do filme. Com ele, quebra-se um pouco do naturalismo já mencionado ao jogar na tela uma carta tão marcada quanto Broderick, mas felizmente sua aparição dura apenas poucos segundos.

Por fim, Casey Affleck, embora seja dotado de mérito próprio, numa atuação cheia de nuances, gestos e trejeitos que expõem a dor reprimida de seu personagem, há também uma forte valorização de seu nome através do lobby que vem sendo realizado por Ben Affleck (seu irmão, hoje um dos nomes mais respeitados da indústria) e Matt Damon (produtor do filme) entre os votantes das premiações. Isso já aconteceu com outros indicados no passado, ressaltando o caráter gregário e hermético da indústria americana, ajudando-nos ainda a entender porque é tão difícil inserir uns dos nossos na corrida. Com Affleck, contudo, esse “pistolão” ganha tons ainda mais preocupantes quando posto ao lado das acusações de abuso que o ator recebeu de colegas da produção do filme “Eu ainda estou aqui: o ano perdido de Joaquim Phoenix” (2010), um filme de mal gosto em que o ator do título finge ter enlouquecido para cometer uma série de absurdos em cena. Affleck foi um dos idealizadores dessa trama-besteirol, mas os absurdos por sua conta aparentemente se deram nos bastidores da produção, tendo sido acusado de abuso pela diretor de fotografia por supostamente tocá-la enquanto ela dormia, e ainda ter deixado de pagar a produtora depois que esta recusou-se a dormir com o ator. As denúncias, evidentemente, precisam passar pelo escrutínio da justiça, mas seguem uma longa tradição de nomes masculinos que permanecem intocáveis após faltas graves, enquanto muitas vezes as próprias vítimas sofrem as maiores consequências.

Muitos dirão que as eventuais faltas de Affleck fora de cena não devem ser parâmetros para a avaliação de sua performance. Nesse mundo da “pós-verdade”, onde até um presidente americano consegue ser eleito mesmo depois de ter dito que “pegaria as mulheres pela xo…”, é triste ver que certas noções de empatia e respeito são secundarizadas diante de pretensas tecnicalidades imparciais. O cinema é feito para valorizar as experiências humanas e alguém que pode ser um abusador não merece receber um troféu, por mais brilhante que seja sua atuação – e, à despeito do burburinho midiático, sua performance não tem nada de brilhante, estando bem abaixo, por exemplo, do trabalho de Viggo Mortensen em “Capitão Fantástico”. Assim, apesar de todos os predicados da produção, o mal estar diante de seu protagonista é grande, e resta a sensação incômoda de que Hollywood tem ainda muito o que melhorar.

Vinícius Volcof
@volcof

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