Cinema com Rapadura

Críticas   segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Um Cadáver Para Sobreviver (2016): o humano como ferramenta

Estreando no país diretamente na Netflix, o filme é uma realização surpreendente de dois diretores iniciantes, numa trama que mistura profundas reflexões sobre a humanidade com a mais inventiva estética indie e comédia nonsense.

Centrada no desolado Hank (Paul Dano, de “Pequena Miss Sunshine”), um jovem diante do suicídio e perdido numa praia deserta que ele nos diz situar-se numa ilha do Pacífico, o roteiro escrito pelos próprios realizadores não se inibe em inserir um exagerado elemento ex machina que altera, com bastante surrealismo, as perspectivas do protagonista. Esse elemento é Manny (Daniel Radcliffe, o eterno Harry Potter), um cadáver engravatado e gasoso achado à beira mar que lança Hank em reflexões sobre a própria vida, enquanto realiza proezas com seu corpo multitarefa (um verdadeiro canivete suíço, como alude o título original). Em outras palavras, a plot poderia ser resumida na ideia: o que você faria se estivesse com Daniel Radcliffe (ainda que morto) numa ilha deserta?

A clara rima entre a morte e a vida é tratada com bastante ironia pelos realizadores, Dan Kwan e Daniel Scheinert, em situações disparatadas que lhes permitem trabalhar, sem inibições, com toda a organicidade do corpo humano, por mais asqueroso que às vezes ele seja. Gases e fluídos, assim como boca, bunda e pênis (sua “bússola especial”) são retratados sem repressões, numa doação completa de Radcliffe em atuação íntima com Dano. Assim, abrem-se fortuitos espaços para discussões sobre nossa humanidade, ao mesmo tempo que o isolado Hank tenta reencontrar sua própria conexão com a vida.

Começando em circunstancias dramáticas, a história logo ganha ares de fábula ao mergulhar na loucura de Hank em interação com o corpo inerte de Manny, chegando a travar conversas com ele como se em sessões psicanalíticas. A direção ágil e inventiva dos parceiros Daniels (diante da homonímia, eles criaram uma produtora com esse nome) parece atingir, com saídas visuais muito sagazes, todas as potencialidades desse roteiro ensandecido, que não perde tempo com cenas intermediárias, detendo-se apenas ao fundamental. Alguns podem se incomodar com ritmo, mas diante do caráter de conto que a história tem, a opção narrativa cabe muito bem.

Nas mãos de diretores que não soubessem exatamente o que fazer, a trama poderia redundar em algo maçante ou esforçadamente pedagógico. Com os rapazes, porém, cada ponto dramático encaminha para o seguinte, numa sequência ágil de acontecimentos verossímeis dentro daquele universo, além de realizado da melhor maneira possível para uma produção que evidentemente não tivera um folgado orçamento.

Há também bastante espaço para o surrealismo, à medida que a história se permite mergulhar na mente em decomposição do protagonista. Até os momentos mais ilusórios, quando o corpo de Manny é feito de jet-ski, pode ser interpretado como uma alegoria do escapismo em que o outro protagonista está mergulhado. Partir em mar aberto sobre um corpo-barco é fugir da vida que a terra lhe reserva.

Assim, o espelho psicológico entre os dois rapazes fica evidente, ora com a identidade de ambos literalmente se confundindo. O “morto muito louco” (é inevitável a comparação com esse clássico dos anos 80) vivido por Radcliffe surge, portanto, como voz autoconsciente do personagem de Dano diante de um momento crítico de sua vida, de perda de perspectivas e sensação de isolamento. Incapaz de tratar pontes subjetivas com qualquer outra pessoa, sua humanidade revela-se a um cadáver.

Não nos esqueçamos, porém, que trata-se de uma comédia. Momentos embaraçosos de descontração aparecem por todo o arco da história, sem deixar, contudo, de também serem inventivos e surpreendentes. Desde as referências culturais (como a “Jurassic Park”) até a descompassada cena romântica entre os rapazes são preenchidas por uma ironia que parece satirizar o absurdo da vida, à mesma medida que é ferramenta terapêutica da jornada de redescoberta de Hank.

O mais curioso é tratar-se de uma das alegorias mais clichês da construção dramática: a floresta como locus subjetivo de personagens perdidos remonta às origens da ficção, desde as agruras de Odisseu até o terror escatológico da geração perdida de “A Bruxa de Blair” (1999). A adição aqui é dessa figura improvável do cadáver de Manny, mais vivo que o sobrevivente Hank. Assim, a troca psicológica retratada em tela é alegoria de uma busca inconsciente pelo sentido da vida, combustível fundamental para qualquer barco que pretende zarpar do cais.

Vinícius Volcof
@volcof

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