Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 08 de janeiro de 2017

Eu, Daniel Blake (2016): um retrato do nosso tempo

Em uma narrativa seca e quase documental, o protagonista-título luta contra um sistema brutal para manter sua dignidade.

No final de 2016, o Estado do Rio de Janeiro estava tão atolado em uma crise econômica que ficou sem pagar diversos funcionários públicos, tanto ativos quanto aposentados. Reportagens sobre esses servidores, cumpridores de suas obrigações e que pagam seus impostos em dia, indo buscar cestas básicas doadas e sendo ameaçados de despejo por falta de pagamento justamente por não estarem recebendo seus vencimentos devidos tornaram-se comuns nos meios de comunicação e somaram-se às mazelas com as quais os brasileiros já se acostumaram, como a falência da segurança e saúde públicas.

Em seu todo, “Eu, Daniel Blake”, do veterano cineasta inglês Ken Loach (“Terra e Liberdade”), é sobre pessoas passadas para trás pelo Estado, mesmo que tenham feito sua parte para mantê-lo. Portanto, mesmo tendo como cenário a Inglaterra (nação que, pelos óculos do “vira-latismo”, o brasileiro médio tende a enxergar como perfeita), o longa poderia facilmente ser transplantado para o Brasil.

Acompanhamos a quase kafkaniana jornada do personagem-título por um sistema que parece desprezá-lo enquanto tenta apenas subsistir dignamente, em uma narrativa que fala mais sobre a falta de empatia do Estado do que sobre um conflito ideológico entre esquerda e direita (embora ele exista). Nisso, a despeito do roteiro ter um conteúdo altamente politizado, o texto escrito por Paul Laverty (“Ventos da Liberdade”) só fala de partidos políticos tangencialmente e em uma única linha de diálogo, quando um personagem terciário critica o Partido Conservador Britânico.

Daniel (Dave Johns, estreando no cinema) é um carpinteiro de meia-idade que, após um ataque cardíaco, precisa receber um auxílio previdenciário enquanto se recupera. Mesmo proibido de trabalhar pelos seus médicos, ele acaba perdendo o benefício por não ter somado “pontos” suficientes em um formulário-padrão de comprovação de invalidez. Enquanto luta para reaver seus direitos, conhece uma jovem mãe solteira (Hayley Squires, de “Uma Noite Real”), em situação de desespero parecida com a sua.

Ken Loach adota um estilo similar ao dos Irmãos Dardenne (“Dois Dias, Uma Noite”, “O Garoto de Bicicleta”), em uma narrativa quase documental. O drama de seus personagens não é sublinhado por uma trilha sonora melosa ou por movimentos de câmera grandiosos, com sofrimentos e indignidades falando por si. Em seus duros cem minutos de projeção, o longa não se preocupa em dourar a pílula ou em enfeitar sua história. Mesmo momentos da trama que poderiam ser considerados exagerados, como a cena da cesta-básica, são reafirmados pela realidade, que se mostra tão inclemente quanto a ficção.

O protagonista se vê preso em um mundo de burocracia informatizada e cercado por um mar de indiferença onde o mínimo sinal de empatia por parte dos outros é encarado como algo a ser repreendido. Sim, existem pessoas boas ali que tentam ajudar o próximo, mas seus louváveis e contínuos esforços se mostram infrutíferos.

Não é surpresa quando aqueles próximos a Daniel começam a desrespeitar o sistema para conseguir sobreviver, mas é neste ponto que o personagem mostra o seu diferencial. Colocá-lo como um carpinteiro reforça seu martírio, de um homem que não abre mão dos seus princípios apenas por conforto ou um prato de comida. Em uma época quando anti-heróis parecem ser a norma, a persistência do antiquado Daniel Blake, em seu apartamento minúsculo cercado das memórias de sua falecida esposa, é o seu próprio manifesto.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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