Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Francofonia – Louvre Sob Ocupação (2015): Sokurov e sua autenticidade revolucionária

O filme repete o que a filmografia do cineasta russo contém: é subversivo, devoto à arte e à história, erudito e com impressionante domínio de linguagem cinematográfica. Portanto, extraordinário – e diferente do que o público está acostumado.

Os filmes de Alexandr Sokurov não são aprazíveis para qualquer tipo de espectador. O russo não deseja ser popular, mas sim fazer sua arte com seu estilo próprio. E o faz de forma sublime com “Francofonia – Louvre Sob Ocupação”.

Francofonia” é subversivo. Na esteira da hibridização dos gêneros, o longa é um amálgama que transita entre o documentário e a ficção, com vários insights metalinguísticos. Evitando uma cronologia plenamente linear – ainda que sempre compreensível –, elabora três núcleos distintos. O principal se refere ao relato da ocupação das tropas alemãs em Paris, iniciada em 14 de julho de 1940, enfocando a interação do diretor do Louvre, Jacques Jaujard, com o general nazista Wolff-Metternich. Em comum entre ambos, o interesse no museu. O filme se inicia, porém, com o próprio Sokurov: primeiro, revela pessimismo quanto à recepção de “seu novo filme”; depois, conversa por webcam com um indivíduo que navega em um mar agitado levando obras de arte no navio – exatamente como ocorreu na Segunda Guerra. O terceiro núcleo narrativo é o mais ficcional e poético, reduzido a dois fantasmas: Marianne, evocando os três pilares da Revolução Francesa, e um orgulhoso Napoleão que apresenta algumas obras de arte do museu como seus troféus de guerra. A montagem transita, pois, entre as três narrativas.

“Francofonia” é uma admirável devoção à arte e a história, mais uma de Sokurov, sempre o grande mentor dos filmes que conduz. Desta vez, trabalha como ator (e narrador), roteirista e diretor. Em um fantástico mergulho, o que ele faz é um tributo ao Musée du Louvre, contemplando-o junto ao público. Oportuno mencionar que a veneração (pela arte e pela história) já esteve presente em “Arca Russa”, seu longa anterior – filmado no museu Hermitage, impressiona o exercício hercúleo de filmagem integral em plano-sequência (e só por isso já vale ser visto), relatando episódios relevantes do pretérito russo. Quem comunga do seu ponto de vista certamente ficará fascinado pelo trabalho.

Francofonia” é erudição. Tendo como núcleo o relacionamento histórico entre guerra e arte, Sokurov transita entre o explícito – em afirmações peremptórias como “todos os franceses são cineastas” (dispensável recordar que a imensurável contribuição francesa para a sétima arte não se reduz à nouvelle vague) ou “os museus não se importam com o que acontece ao redor deles, desde que os deixem em paz” – e a mera sugestão – mencionando o estereótipo xenofóbico dos franceses (Jaujard justifica não falar alemão por ser “bem francês”) e revelando certo rancor (para ele, a Rússia bolchevique não teve sua arte respeitada pelos nazistas), além de um desgosto em relação àquele povo (“o Louvre vale mais que a França inteira). Isso tudo na superfície, pois Sokurov é incisivo na impactante mensagem: as falhas do ser humano (como o ódio da guerra) são um risco ao que ele faz de mais belo (como a arte). As peças de arte no navio e as obras que fatalmente naufragaram não constituem metáfora rasa.

Francofonia” é um raro exemplo de invejável domínio de linguagem cinematográfica. Começa com o eficaz uso da câmera (a cena da onda caindo na câmera é formidável), pela tela dividida no prólogo e pela fotografia maravilhosa (principalmente o Louvre, em seu interior e exterior, e mesmo Paris). Mas Sokurov vai além, com imagens reais da época (incluindo Hitler em frente à Tour Eiffel!) – razão de aspecto quadrada e sem cores –, cenas de filme com a pista de som visível e uma metalinguagem ampla sobre a arte e sobre filmes (aparecem até mesmo claquetes). Há também uma fenomenal quebra da quarta parede – sempre exclusiva na voz do autor, que chega a indagar diretamente o espectador: “ainda não está cansado de ficar me ouvindo?”. O esmero no trabalho de filmagem fica visível em especial quando aparecem os retratos, captados em um ângulo que foge do óbvio, de perto e privilegiando os olhares. A trilha sonora instrumental é modesta, até para não chamar a atenção.

Sokurov faz em “Francofonia” um trabalho autoral de autenticidade revolucionária, diferente do que o público está acostumado. Extraordinário, portanto. O mestre Tarkovsky certamente estaria orgulhoso.

Diogo Rodrigues Manassés
@diogo_rm

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