Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Rebecca, a Mulher Inesquecível (1940): obra-prima do mestre do suspense

São incontáveis os fatores que tornam a película um clássico da sétima arte. Trata-se de um dos melhores da extraordinária filmografia de Alfred Hitchcock: simplesmente imperdível.

[Filme foi relançado nos cinemas em 2016]

Clássico é aquele que transborda os limites do seu tempo, tornando-se eterno, ainda que reflita a realidade da sua época. Analisar um clássico consolidado implica enfrentar uma questão nevrálgica: por que é considerado um clássico? O que “Rebecca, a Mulher Inesquecível” tem de tão especial?

Provavelmente, a sinopse não é chamativa para a maioria: uma moça de origem humilde que, após casar-se rapidamente com um viúvo inglês nobre e rico, descobre aos poucos como era turbulento o primeiro casamento do seu marido. Na superfície, um enredo singelo, que, porém, se revela tão surpreendente quanto verossímil – duas virtudes que, embora devessem, não costumam coabitar na seara da sétima arte.

É esse, pois, o primeiro diferencial de “Rebecca”. Ora, uma narrativa tão repleta de plot twists – alguns em sequência, inclusive – costuma recair no fosso do inacreditável e do cansativo; diversamente a película é crível em razão da sua estruturação impecável, que atenta para a diferença pontual entre o explícito e o sugerido, o que permite as reviravoltas. A sugestão tem um poderio tão grande que, para além de possibilitar um clima fértil de suspense, evita a incoerência interna. A fuga à estrutura clássica de três atos bem delineados mantém o espectador instigado ao mesmo tempo em que foge da vala comum da previsibilidade.

Nesse sentido, previsibilidade causava ojeriza a Alfred Hitchcock. Sua habilidade em elaborar uma atmosfera de mistério era tão notória que lhe garantiu o (merecido) título de “mestre do suspense”. Tendo por base um script perspicaz, seu primeiro filme nos EUA constitui uma obra-prima (dentre as várias da sua filmografia). O esmero na direção não apenas resulta em cenas marcantes como também confirma a sua genialidade: do uso dos planos-detalhes (como a mão da maçaneta antes de abrir um cômodo, incrementando o suspense) à mise-en-scène aplicada em cada cenário (antes do casamento, os futuros cônjuges ficam sentados próximos um do outro na mesa de refeições; depois, paradoxal e propositadamente, o mais distante possível); das minúcias explicitadas (como a movimentação de uma escova de cabelo) às simbologias discretas (a chuva que recebe o casal em Manderley é um inegável indicativo do porvir tempestuoso); do prólogo impactante ao grand finale. Isso tudo está em “Rebecca”, mas também, analogamente, em “Festim Diabólico”, “Janela Indiscreta”, “Disque M para Matar”, “O Homem que Sabia Demais”, “Um Corpo que Cai”, “Intriga Internacional”, “Psicose” e “Os Pássaros”, dentre outras fitas preciosas que brindaram a sétima arte.

Apesar dos limites inerentes à tecnologia da época (razão de aspecto reduzida e em formato quadrado, típica das câmeras da época, além do preto-e-branco), não houve impacto à criatividade imensurável de Hitchcock, que teve êxito para formar uma bela fotografia em “Rebecca” a partir de tomadas externas à mansão do casal. O prólogo tem intenso suspense: câmera subjetiva em movimento em um local até então desconhecido, sobreposta por uma narração voice over que passa a fazer sentido mais adiante. Como se não bastasse, o longa tem ainda momentos de humor (em especial com falas sarcásticas de uma personagem importante no primeiro ato) e de romance (nas primeiras interações do casal).

O elenco tem desempenho excelente e as personagens são fascinantes. A protagonista dá nome ao filme, fazendo-se presente, de maneira simbólica, mesmo após falecida. A personalidade de Rebecca é integralmente revelada apenas no desfecho da película: enquanto isso, o espectador é brilhantemente manipulado para especular sobre ela e frustrar-se com teorias equivocadas, ainda que plausíveis (Hitchcock admitia gostar de fazer o público sofrer). É preciso assistir o longa até o final para concluir quem era ela e quais seus segredos. A segunda Sra. de Winter foi interpretada com precisão por Joan Fontaine, ciente da personalidade oposta à antecessora. Ingênua e indecisa (não consegue sequer opinar sobre o cardápio de uma refeição para convidados), a omissão de seu nome corrobora com a sua neutralidade. Por sua vez, o fenomenal Laurence Olivier deu vida a Maxim de Winter, escolha ideal, pois só um talento gigantesco como ele daria conta do papel (o olhar melancólico e enigmático ao recordar-se da falecida esposa é muito expressivo). Ao descrever Rebecca para a segunda esposa – narração homodiegética, adicionando-se à extradiegética do prólogo e à intradiegética dos diálogos, completude rara nos filmes –, o faz com tanta vivacidade que conduz o espectador a uma imersão catártica. Também a modificação da personalidade de Maxim (antes, ativo e invasivo; depois, distante, passivo e introspectivo) exigiu cuidado no trabalho de interpretação. A Sra. Danvers de Judith Anderson compõe um espetáculo à parte, vez que a atriz encarnou de forma magnífica a devoção da personagem por Rebecca, que causou antipatia (pela segunda esposa) e frieza – a caracterização de roupa preta e o tom sombrio (saindo de trás da cortina, por exemplo) fortaleceram o viés pretendido, como faz a trilha sonora. Florence Bates atuou como Sra. Van Hopper, cuja função é alívio cômico ao cristalizar a frivolidade do setor que representava.

Há muito mais que poderia ser dito (outras personagens relevantes, outros caracteres de destaque etc.). E todas as palavras seriam insuficientes. Melhor sintetizar “Rebecca” como uma obra-prima, uma das várias do mestre do suspense.

Diogo Rodrigues Manassés
@diogo_rm

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