Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 22 de julho de 2016

Chocolate (2016): penso, logo existo

Tecnicamente preciso, é no roteiro que o filme se mostra brilhante. A direção burocrática afeta o produto final, que, ainda assim, é esplendoroso. Trata-se de um filme admirável, encantador e essencial para qualquer cinéfilo.

O racionalismo francês ganhou com René Descartes uma relevante contribuição cristalizada na expressão “penso, logo existo”. Que o nome genérico não induza ao erro: dentre outros atributos, o inteligente filme (também francês) “Chocolate” acolheu a máxima cartesiana.

O fascinante enredo se passa no fim do século XIX e tem como protagonista Rafael Padilha, um imigrante ilegal que, encontrado nas docas, une-se ao palhaço Footit para se apresentar como primeiro palhaço negro na França. Adotando o nome artístico Chocolat, acaba tendo uma carreira artística de altos e baixos.

É nos altos e baixos que o brilhante roteiro encanta: repleto de plot points, o espectador é constantemente surpreendido em razão de uma narrativa que foge do linear antes de qualquer estabilização (que a tornaria monótona). Assim, enquanto se imagina que Footit e Chocolat terão uma carreira profícua e de ascensão inabalável, ela acaba sendo hesitante em vários momentos. Como a vida de qualquer pessoa, certo? Este é o primeiro fator que torna “Chocolate” verossímil.

Também é crível a construção do protagonista. Antes de ser Chocolat, Rafael é conhecido no circo como Kananga, assumindo o papel de um canibal africano cuja função é assustar as pessoas. Ingênuo, ele é facilmente seduzido pela proposta profissional de George (Footit), que assume as rédeas da carreira de ambos. Todavia, como qualquer pessoa, Rafael mostra que tem virtudes – notadamente seu quê de Don Juan (com mulheres cuja personalidade foi elaborada com esmero e que, despidas de qualquer preconceito, ajudam no fortalecimento emocional e intelectual do protagonista) –, mas também defeitos – em especial seu vício em jogos. George é seu oposto (inclusive na representação sutil da sua sexualidade), e a interpretação de James Thiérrée é precisa e preciosa para o coadjuvante de luxo que é.

Apesar de um ato final questionável em seu discurso, o roteiro de “Chocolate” é magnífico. Não apenas pela injeção de vicissitudes na construção narrativa, e não apenas ao delinear bem as personagens; o script é primoroso ainda no trato da delicadíssima questão do racismo sofrido por Rafael em sua época. Nesse sentido, há um evento em especial que se torna uma mudança de paradigma para ele, pois o ensina a perceber quando é vítima do preconceito e o leva a refletir e agir contrariamente a isso. Para uma existência digna (ou seja, para ser respeitado como ser humano autônomo e de mesmo valor que o de qualquer outro indivíduo), Rafael aprende (em razão do evento mencionado) que é necessário pensar e mesmo agir – impondo-se num local e numa época em que um negro, por exemplo, não poderia ter sucesso profissional sequer no circo. Concluiu como Descartes: “penso, logo existo”.

A riqueza técnica do filme também merece menção. O elenco afinado tem como protagonista Omar Sy, cujo Rafael (ou Chocolat, ou Kananga) explora a sensível habilidade do ator em transitar entre o humorístico e o dramático (como a película em si, comédia dramática que é). Merece atenção um emocionante monólogo shakespeariano interpretado por Sy, simplesmente sensacional. Do humor corporal ao penetrante esboço do Zeitgeist (e a tênue crítica social), do figurino (que melhora exponencialmente na fase parisiense) à maquiagem (bem convincente na cena final), da trilha sonora à atuação, é tudo impecável. Exceto a direção.

Roschdy Zem se mostrou um diretor burocrático e discreto, em descompasso com a excelência dos demais atributos do filme. Elipses irregulares, prevalência de planos demasiadamente curtos (com excesso de uso de contracampos efêmeros nas cenas de apresentação circense), filmagem conservadora em cenas dramáticas (personagem desolado à noite na chuva, enquadramento centralizado e isolado geograficamente no auge da sua tristeza etc.) e um final protocolar (texto e imagens reais) foram responsáveis por uma queda de qualidade do produto final. Exemplo fácil é a filmagem da saída do interior para Paris em movimento pendular (establishing shot): nada original. Quiçá “Chocolate” estivesse em um top 5 do cinema deste ano se Zem fosse mais ousado e criativo.

Não obstante, “Chocolate” consegue ser um filme extraordinariamente tocante. A perenidade da mensagem nuclear concede a proporção de grandiosidade que um longa inteligente obtém. De quebra, ajuda a desmantelar o mito de que o cinema francês é chato. Basta dar uma chance.

Diogo Rodrigues Manassés
@diogo_rm

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