Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 23 de junho de 2016

Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois (2015): Bergman e Miike se encontram

Longa do cearense Petrus Cariry é um estudo psicológico de personagem que flerta com o horror surrealista para explorar a sua protagonista.

imageÉ com uma explosão de este “Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois” começa e é assim que ele pode ser definido. Mais recente trabalho do cineasta cearense Petrus Cariry, o longa pode ser descrito como um terror emocional, uma aterrorizante viagem em uma mente atormentada por perda, dor, doença e morte.

Essa jornada não ocorre com alguém previamente atormentado, mas com uma pessoa “comum”, alguém com quem podemos cruzar no supermercado ou no colégio, pegando os filhos, o que torna a situação mais próxima de nós e, por consequência, mais angustiante.

Na trama, Clarisse (Sabrina Greve) vive uma vida sem paixão ou prazeres. Quando, por força dos negócios que seu marido estrangeiro (David Wendefilm) tem com o seu adoentado e idoso pai (Everaldo Pontes), ela é forçada a visitá-lo em sua reclusa casa no interior, Clarisse confronta antigos fantasmas do seu passado, em um lugar que só lhe evoca memórias sombrias, especialmente referente às perdas de sua mãe e irmão.

A obra concebida por Petrus, com roteiro escrito por ele, seu pai, o também cineasta Rosemberg Cariry, e Firmino Holanda, é tão intrincada, que as duas maiores referências mostradas na tela são completamente dissipares, mas aqui tornam-se complementares. É possível ver a influência do cinema psicológico de Ingmar Bergman (especialmente “Gritos e Sussurros“) na obra, com Cariry se apropriando (no bom sentido) do foco no estado mental dos personagens, em detrimento de uma narrativa mais realista.

O lidar com a morte (presente, passada e futura), os espectros de erros e abandonos pretéritos, a frieza quase patológica na relação entre Clarisse e seu pai criam um ambiente cheio de rancor que se manifesta no design de produção e fotografia, em uma estética opressora e vanguardista que remete ao ídolo do horror nipônico Takashi Miike que transforma a casa, do idoso, no ponto de vista da protagonista, em um mausoléu assombrado, um lugar opressor e assustador onde é impossível sentir qualquer alegria e até mesmo as memórias de infância são transformadas em combustível para mais dor – não à toa o hobby do pai de Clarisse é a taxidermia, mostrando-o cercado de morte o tempo todo.

Nisso, tecnicamente, o longa é perfeito no que se propõe. A fotografia, assinada pelo próprio diretor, cria um mundo sombrio através de uma paleta de cores escura e triste só apresentando maior “vida” na presença do sangue, destacando-se uma incrível cena no corredor da casa que merece palmas. Os planos do longa são predominantemente fechados e estáticos, o que ressalta o caráter claustrofóbico da trama. A montagem, feita por Petrus e Firmino Holanda, também eleva a qualidade da narrativa, merecendo destaque aqui o raccord maravilhoso que abre a projeção.

Nada disso funcionária não fossem as atuações arrebatadoras de Sabrina Greve e Everaldo Pontes. Ambos os atores desempenham seus papéis com uma entrega desprovida de vaidade, em interpretações apaixonadas nas quais podemos pintar o quadro familiar de Clarisse e seu pai apenas pelas inflexões de suas falas. Todo o contexto trágico entre os personagens, explicitado pelo roteiro, é reforçado pela dor contida nas vozes dos atores.

As duas cenas de sexo que encapsulam a trama principal retratam muito bem a jornada da protagonista. O sangue, no universo feminino, indica simultaneamente dor e mudança, mas aqui também mostra que, ao menos por enquanto, ainda há vida em Clarisse.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

Compartilhe