Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 04 de abril de 2016

O Abraço da Serpente (2015): um river-movie colombiano

Requinte narrativo e técnico fazem desse pequeno filme um dos mais belos sobre a experiência etnográfica.

o-abraco-da-serpente-posterO fluxo caudaloso do rio Amazonas traz uma visita do passado ao velho xamã Karamatake. Corporalmente diferentes, de forma mística, dois homens se reencontram quase quarenta anos depois, mesmo um deles tendo morrido no primeiro encontro. Na magia da floresta e nas crenças daqueles povos, mata-se “uma, dez, dez mil vezes” sem que se perca a ligação diante de uma missão que tem que ser cumprida.

O encontro de um etnógrafo alemão e um índio solitário, através de uma jornada conjunta, conta a história da colonização regional e da consequente desfragmentação das culturas locais pela chegada da civilização ocidental. Uma jornada de vida e também de história, bem como uma dedicatória de amor a maior floresta do mundo e uma denúncia de um holocausto que ainda não cessou.

Fragmentando a narrativa com flashbacks entre o primeiro encontro, em 1909, de Karamatake (Nilbio Torres, na fase jovem) com o adoecido pesquisador Theodor Koch-Grunberg (Jan Bijvoet), e o reencontro do mesmo ponto de origem, agora em 1940, com o etnobotânico Richard Evans Schultes (Brionne Davis), a história conduzida por Ciro Guerra foi baseada nos diários dos próprios pesquisadores, personagens reais cujas experiências de campo são de um valor imprescindível.

Sem cair no academicismo, porém, o que Guerra explora aqui é o encontro de duas culturas – ou porque não dizer dois mundos – que se entrechocam em saberes, valores e percepções. Na narrativa, passado e presente se misturam na percepção não só sensorial, como também espiritual de um velho Karamatake (Antonio Bolívar, na versão idosa), cuja mente aos poucos se desagrega.

Mas é tão difícil lembrar quanto esquecer, e a poesia dessa narrativa está em conduzir uma história ao mesmo tempo clara e complexa, à medida que imerge sua câmera num complexo caldo cultural.

A yakruna, planta mística da tribo dizimada de Karamatake que os pesquisadores estrangeiros tão obstinadamente procuram, é só um pretexto de gatilho à jornada desses heróis. Ainda assim, as cenas em que ela aparece são de um simbolismo poético sobre a capacidade de destruição humana, de um lado, e a sacralização das tradições, de outro. Diante do etnobotânico americano que tenta convencer o velho xamã a leva-lo à flor, dizendo que tinha dedicado toda sua vida às plantas, o índio responde de pronto: “Essa foi a coisa mais sensata que já ouvi um branco dizer”. Ainda assim, nada é tão simples quando duas almas se encontram no santuário da floresta.

O índio aqui não é uma figura rasa, tampouco puramente boa, muito longe de um “bom selvagem”. Seus sentimentos são profundos, tanto em dor e ressentimento, quanto em esperança e respeito pela natureza. A floresta é um santuário, nem por isso desprovida de suas próprias maldades, perigos e maldições, como a borracha. Nos maiores momentos de crise, o índio se vale de distrações e até mentiras, enquanto o branco se utiliza delas por pretextos mais mesquinhos.

Entre protagonistas tão fortes, há ainda o jovem guia Manduca (Yauenkú Migue), um índio aculturado aos padrões dos brancos, e por isso acusado por Karamatake, que protege o etnólogo alemão e posteriormente torna-se guardião de seu trabalho. Em meio a um caldeirão cultural que se passa entre seringais e templos de missões cristãs, idiomas incompatíveis se entrecruzam com naturalidade, ora falando-se nas línguas nativas, ora em espanhol e às vezes até em inglês ou alemão.

“O Abraço da Serpente” é um filme surpreendente e poderosíssimo, que deixou não apenas o “lado de lá do globo” estupefato, tendo sido ovacionado com dez minutos de aplausos quando exibido no Festival de Cannes, de onde saiu com o prêmio da Quinzena dos Realizadores, e indicado ao Oscar desse ano na categoria de Filme Estrangeiro, como fez os próprios colombianos se reconectarem com a floresta e com seu passado colonizado.

Tecnicamente, o esforço dessa realização salta às vistas em cada plano na mata fechada e nas constantes viagens que os protagonistas tomam em uma humilde embarcação a remo. Grande parte do filme, inclusive, se passa pelos meandros do grande rio, o que faz dele uma espécie de road-movie pelas águas do Amazonas colombiano. Em cada parada, um encontro cultural. Em cada encontro, uma torrente de experiências, sensações e sentimentos. Nunca totalmente ameno, nunca totalmente aterrorizante, por mais bizarros que essas interações possam ser. Assim, logo percebemos que, invertendo o jogo histórico, quem passa por um processo de aculturação é o homem branco diante das culturas indígenas regionais.

Karamatake, porém, sente-se por vezes tão deslocado quanto seu companheiro estrangeiro, mostrando que a vida dos povos indígenas também é de uma complexidade que não pode ser singularizada a uma única cultura, tampouco engessada como se fosse imóvel.

Em meio a explosão de cores de uma densa floresta, de um longo rio e um amplo céu, o diretor, associado ao diretor de fotografia David Gallego, decidem-se pelo preto e branco, quebrado apenas em momentos-chave que, justamente por serem raros, fazem o espectador mergulhar ainda mais na narrativa. Ainda que belíssima, a fotografia perde um pouco pela granulação das cenas mais escuras, um problema comum a quem faz essa opção de palheta. Outros trabalhos em preto e branco, porém, incluindo o do brasileiro Walter Carvalho (“A Febre do Rato”, 2011), foram mais bem sucedidos diante desse desafio.

Ainda assim, com atuações magistrais e um roteiro profundamente significativo, a sensação ao sair da sessão de “O Abraço da Serpente” é de ter levado um soco no estômago – ou ter ingerido um chá alucinógeno, tal qual o que os índios tomam. Impossível de entender completamente apenas com uma assistida, esse é daqueles filmes que saímos sem saber o que falar, mas cheios de sensações e sentimentos – e também certo cansaço espiritual.

Vinícius Volcof
@volcof

Compartilhe

Saiba mais sobre