Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 27 de março de 2016

Batman vs. Superman – A Origem da Justiça (2016): muito espetáculo, pouca substância

Ao invés de se concentrar no confronto ideológico (e até mesmo físico) entre os personagens-títulos, o longa de Zack Snyder gasta tempo demais apresentando elementos do universo DC para os próximos filmes da franquia, inchando excessivamente a experiência.

Desde seu anúncio em 2013, “Batman vs. Superman – A Origem da Justiça” foi alvo de grandes expectativas, seja por parte dos fãs ou do carinhosamente apelidado público “civil”. Isso porque o filme prometia um embate entre verdadeiros ícones da cultura pop. No cerne da produção estão figuras que, por mais versões diferentes tenham tido ao longo dos anos, são tão universalmente reconhecíveis quanto o logotipo da Coca-Cola.

Assim, a responsabilidade sobre os ombros de Zack Snyder (que fez o bom “O Homem de Aço”, marco zero da trama do novo longa) já seria gigantesca apenas por lidar com as franquias-título. Some-se ainda o fato de que a fita ainda apresenta a primeira adaptação cinematográfica da Mulher-Maravilha e ainda introduz as estreias cinematográficas de outros personagens do panteão de heróis e vilões do Universo DC e seriam poucos os cineastas que não ficariam em posição fetal chorando no canto do estúdio com o trabalho em mãos.

Tais obrigações surgem no roteiro de Chris Terrio (“Argo”) e David S. Goyer (da trilogia “Batman – O Cavaleiro das Trevas”) mais como obrigações a serem cumpridas do que como acontecimentos orgânicos dentro da narrativa. A aventura mostra um Batman/Bruce Wayne (Ben Affleck) já veterano no combate ao crime, tendo de lidar com mais uma perda gigantesca quando um prédio de sua empresa desaba durante a batalha final de “O Homem de Aço” entre Superman/Clark Kent (Henry Cavill) e Zod (Michael Shannon).

Dois anos depois, enquanto Clark encara as ramificações políticas e sociais de seus atos como Superman, Batman começa uma investigação que o leva ao jovem bilionário Lex Luthor (Jesse Einsenberg), em uma conspiração que o coloca em rota de colisão com o Último Filho de Krypton. Em meio às suas investigações, Bruce ainda encontra a bela Diana Prince (Gal Gadot), uma mulher de passado misterioso.

A trama do filme, aos poucos, deixa de se concentrar no crescendo do conflito físico e ideológico entre os dois heróis (que dividem raras cenas no decorrer da projeção e trocam poucas frases no meio destas) e mais no seu checklist de coisas a fazer. Nisso, temos uma miríade de cenas de sonhos e alucinações (algumas que só farão algum sentido nos próximos filmes da série) ocupando tempo precioso que poderia ser utilizado no desenvolvimento das diferenças reais entre os protagonistas.

A montagem não flui, fazendo com que o público sinta o inchaço das suas duas horas e quarenta minutos de duração. Mesmo que Snyder não tivesse anunciado que está por vir em home-video uma versão com mais 30 minutos de duração, qualquer um poderia ver que estão faltando elementos narrativos importantes na história, vide uma atrapalhada transição após um diálogo de Perry White (Laurence Fishburne) que leva a lugar nenhum. Durante a projeção, ainda somos brindados com uma cena absolutamente inútil que serve somente para mostrar uma companhia aérea que patrocina o filme e com um plano que mostra literalmente apenas uma bola de fogo.

O diretor desenvolve os ícones visuais com competência, vide a aura divina que seus planos dão ao Superman, cuja capa em alguns momentos remete a asas angelicais, o caráter sombrio das aparições do Batman – o medo de um grupo de escravas asiáticas resgatadas pelo Homem-Morcego é real e justificado e chega a ser tematicamente engraçado que a aparição do posterior do Batman mesclado a uma parede remete à filmes de terror orientais -, e a armadura da Mulher-Maravilha que segue a linha dos quadrinhos ao mesmo tempo que mostra sinais de marcas do tempo compatíveis com o background da heroína estabelecido ali.

Não há dúvidas de que o cineasta compreende a identidade visual da santíssima trindade e a traduz de modo perfeito à tela, dotando algumas cenas inclusive de profundo significado religioso – com certeza as pinturas de Caravaggio serviram como inspiração central para alguns momentos-chave da fita, algo que até justifica o visual mais sombrio da fotografia, mesmo não impedindo que essa falta de vida nas cores fique cansativa após certo ponto. Além disso, os temas musicais dos personagens criados por Hans Zimmer e Junkie XL são efetivos e marcantes.

O problema é quão pouco o filme se importa com os valores centrais por trás desses heróis. Sim, o fato de Batman marcar suas “vítimas” e deixar “lembretes” de suas visitas remete diretamente à sua inspiração em “Zorro” (vide a ótima sequencia de abertura que mostra a origem do personagem), mas aqui o vemos tomar ações muito mais extremas do que em qualquer outra versão do Cavaleiro das Trevas (até mesmo a de Frank Miller). Esse é um Batman que não usa balas de borracha e o Superman estaria certo em questionar suas atitudes quase-fascistas não fosse o fato de que, em dado ponto da projeção o próprio Homem de Aço faz um bandido humano atravessar duas paredes – mesmo com o herói afirmando que, nesta ação, ninguém morreu.

Até quando o longa tem a oportunidade perfeita para fazer com que seus protagonistas possam discursar sobre seus pontos de vista, ele prefere investir em uma cena de ação ou, em certo caso, para uma bola de fogo. O que deveria ser um conflito de proporções épicas se torna um mal-entendido provocado de maneira esquisita por um vilão mimado, cheio de tiques e de motivações duvidosas – sim, estou falando do Luthor de Jesse Einsenberg, que mais parece uma mistura de Coringa com a caracterização de Mark Zuckerberg feita por ele em “A Rede Social”. Se for feito um concurso para ver qual plano tem mais furos, o desse Lex ou o de “Superman – O Retorno”, o páreo certamente seria duro e o fato de que os heróis – especialmente Batman – caem nos esquemas do vilão acaba emburrecendo os protagonistas.

Henry Cavill entrega um Superman que deseja realmente ajudar as pessoas e que não se acha digno da adoração (e do ódio) de qual é alvo. Essa polarização da qual o personagem é vítima apenas o afastam do povo que deseja proteger e fazer parte. Não é a toa que Lois (Amy Adams) e Martha (Diane Lane) funcionam como seus elos com a humanidade – especialmente porque elas são basicamente suas únicas interlocutoras, com exceção de uma cena um tanto mais surreal onde o herói recebe conselhos de uma figura do seu passado. Cavill e Amy Adams possuem uma ótima química e, não fosse a bela cena deles no apartamento de Lois, não teríamos nenhum insight sobre o homem por trás do Super.

Mesmo com a escolha pouco ortodoxa (para dizer o mínimo) na caracterização do Batman de Ben Affleck, o ator cala a boca dos seus críticos ao trazer uma figura complexa, cheia de arrempendimentos e obviamente perturbada, com as cenas de ação trazendo elementos bem-vindos da série de games “Arkham”, com o herói se movimentando em combate do modo que os fãs sempre sonharam. O Alfred de Jeremy Irons funciona aqui mais como o Grilo Falante de Bruce do que como uma figura paterna mais sábia, trazendo um humor mais ácido e um pouco menos de carinho que a versão defendida por Michael Caine, mas o personagem cumpre bem o seu papel.

Propositadamente (e de maneira acertada), o filme deixa muito sobre a Diana de Gal Gadot em aberto, mas já sabemos que a Mulher-Maravilha da atriz é uma guerreira dotada de uma ferocidade mitológica e o pouco mostrado aqui já é capaz de aumentar a ansiedade pelo filme-solo da heroína.

Infelizmente, “Batman vs. Superman – A Origem da Justiça” acaba sendo mais uma luta entre visual e substância. As diversas homenagens aos quadrinhos funcionam (uma delas deixará os fãs de uma certa mega-saga oitentista de cabelos em pé) e ver a Trindade trabalhando em conjunto é simplesmente sensacional, especialmente por conta do espetáculo pirotécnico oferecido por Snyder, mas o conteúdo do roteiro é muito mais raso que o do visual. Ao tentar transformar na marra o seu filme no épico prometido, o cineasta rouba um pouco da humanidade daqueles ícones, deixando-os menos interessantes.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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