Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 03 de março de 2016

Amy (2015): documentário sobre a artista para além da celebridade

Vencedor do Oscar de Melhor Documentário desse ano, o esforço de uma releitura histórica sobre a biografia da cantora é muito bem sucedido.

Amy-posterEm entrevista a uma rádio inglesa, a ainda jovem e iniciante Amy Winehouse, dispara: “Eu não acho que aguentaria ficar famosa. Eu enlouqueceria”. Nascida em 1983 em Londres e morta em 2011, aos 27 anos (idade maldita para os gênios da música), Amy foi uma das mais brilhantes artistas de seu tempo, ressignificando o jazz contemporâneo e cativando um imenso público ao redor do mundo. Eclipsando toda sua força artística, porém, estava sua vida pessoal, um turbilhão de acontecimentos envolvendo muitas drogas e álcool e terminando da forma mais trágica possível.

Asif Kapadia, experiente documentarista que em 2010 havia levado às telas a vida do piloto brasileiro Ayrton Senna, agora nos apresenta um novo trabalho produzido pela Netflix sobre a vida da cantora mais icônica de nossa época. Contando com muitas imagens de sua intimidade, capturadas por ela mesma ou pelos amigos mais próximos, o filme busca reconstruir tanto sua figura artística quanto oferecer uma releitura das polêmicas envolvendo seu nome. Assim, também lança nova luz sobre o papel de certas figuras em sua guinada autodestrutiva, como seu pai Mitchell, seu namorado Blake Fielder-Civil e a mídia britânica. No final da sessão, estamos emocionalmente destruídos pelo tour de force a que Asif nos guia, mas certamente com uma visão um pouco mais apurada sobre uma figura cujas lendas e fofocas superaram sua verdadeira biografia.

Nascida de uma família judia na periferia de Londres, vemos Amy antes da fama, em raras imagens que se perderiam anos depois, diante da superexposição a que a artista foi vítima. Um pouco gordinha, feliz como uma adolescente, a jovem Amy canta “Happy birthday to you” em meio a amigos, já com aquela voz potente que a consagraria. Seguindo nessa linha, a narrativa é guiada por entrevistas com as principais figuras de seu entorno, quase nunca mostrando-as, mas preferindo, ao invés disso, deixar suas vozes sob fotos e vídeos da vida da estrela.

Também são muitas as imagens recuperadas de entrevistas na televisão. Destaca-se aí um notável ciclo observável ao longo do filme, que muito diz sobre o trato que a imprensa lhe dava: quando lança com o primeiro álbum, Frank (2003), com singles como “Stronger than me”, Amy é convidada aos principais talk-shows da Inglaterra e dos EUA como uma estrela em ascensão, certamente exótica, já um pouco polêmica e inegavelmente talentosa; já nos últimos anos, mesmo com o sucesso e qualidade do álbum Back to Black (2007), a artista vira tema das piadas preguiçosas e ofensivas desses mesmos apresentadores, como Jay Leno e Grahan Norton. Nota-se, assim, que Amy fora vista como um produto de uma mídia imediatista e rasa, descartável ao menor sinal de defeito.

Aos 16 anos, cantando numa jazz orchestra em Londres, seu talento chamara a atenção de produtores talentosos, com Nick Shymansky e Salaam Remi. Logo, a Sony aportou um alto valor em sua carreira e Amy começou a se notabilizar. Seu pai, Mitchell Winehouse, sempre muito cioso de seus compromissos contratuais, chega a lamentar o fato de não tê-la forçado a uma rehab antes da gravação do segundo álbum, porém aparece como figura controversa do longa à medida que explorava financeiramente a filha, lucrando sobre sua imagem. Diante dos vícios em drogas e álcool da filha, que apresentava sintomas depressivos desde a infância (“eu me sentia estranha”, ela diz à certa altura), o pai chega a dizer que se ela quisesse tratar-se, isso era responsabilidade dela.

Outro aspecto comovente que perpassa todo o documentário e tem um fechamento de ouro é a admiração da cantora por Tony Bennett. De início, vemos Amy dizer o quanto gostava e como fora influenciada pelo cantor americano. Já no final, a vemos recebendo um Grammy anunciado por ele e até mesmo gravar, nervosíssima, uma participação em seu álbum de duetos. Ao lado do ídolo, Amy parecia uma criança.

Criticando a produção musical de seu tempo, Amy chega a dizer, em outra entrevista, que começara a compor “para se desafiar” e achava graça quando comparada com outros de seu tempo, como Dido. Assim, vemos que muitas vezes os jornalistas ficavam aquém de sua figura intensa, dotada de uma sagacidade toda própria e também de um pouco de arrogância.

Entediada diante da fama, cansada do aprisionamento dos contratos profissionais e de fãs cada vez mais agressivos e totalmente insolidário com seus problemas, Amy encontrou diversão e companhia ao lado de Blake Fielder-Civil, ex-assistente de vídeo com quem casou-se em Miami. Junto a Blake, também encontrou o crack e a heroína, que somados ao alcoolismo e uma crônica bulimia resultaram numa parada cardíaca fatal, em julho de 2011.

Até hoje é difícil mensurar o quanto a cantora influenciou o meio musical contemporâneo. Seja em artistas que chegaram depois dela ou naquele estilo pin-up que floresceu junto com o movimento hipster, tudo o que compunha a persona de Amy parece ter se diluído em diversos aspectos culturais a nossa volta. Documentários como Amy, na mesma linha de outras revisitações sentimentais, como o próprio documentário de Nina Simone, servem para mitigar um pouco do ranço histórico que estigmatizam as imagens dessas estrelas. Acima de tudo, esse belo esforço narrativo de Asif Kapadia mostra que antes de ser “uma bêbada, drogada ou maluca” (como tantos disseram sobre ela), essa menina era uma grande artista.

Vinícius Volcof
@volcof

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