Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 02 de março de 2016

45 Anos (2015): mínimo em acontecimentos, profundo em sentimentos

Dois veteranos na atuação ganham espaço necessário para brilhar em papéis bem construídos, numa história emocionalmente pesada.

45-AnosÀs vezes perdemos de perspectiva a importância de ser testemunha da vida de alguém. Longos casamentos em que os envolvidos partilham décadas de histórias, nem todas belas, nem todas felizes, ganham um significado e profundidade difíceis de serem mensurados, exceto por aqueles que os vivem. “45 Anos”, assim como outros excelentes filmes antes dele (como “Longe Dela”, de 2006, e “Amor”, de 2012), trata dessas relações longínquas, bem como da incrível capacidade humana de guardar segredos e recalcar sentimentos.

Nas vésperas das bodas de quarenta e cinco anos, Geoff (Tom Courteney) recebe notícias de um passado há tempos enterrado, abalando sua relação com Kate (Charlotte Rampling) e colocando a esposa diante de uma crise existencial. Enquanto o marido mergulha na nostalgia de uma história que lhe foi abruptamente roubada, a mulher começa a refletir sobre seu real papel ao lado daquele homem, diante da terrível possibilidade de não ter sido “a escolhida”, como até então pensava ser.

A direção singela e controlada de Andrew Haigh, diretor de produções ligadas à temática gay, como o longa “Weekend” (2011) e a série “Looking” (2015), dá o estilo e ritmo necessários a seus atores (ambos acima dos setenta anos) agirem com naturalidade e se conectarem honestamente. Em atuações cândidas e certeiras, Courteney e Rampling, ambos premiados no Festival de Berlim, mostram completa maturidade dramática para transmitir tanto um ligeiro cansaço inerente à idade, quanto o turbilhão de sentimentos envolvendo a situação vivida.

Em contraponto aos atributos psicológicos da esposa, está a fraqueza física de um cansado e doente Geoff, delimitando mais um contraste entre esses dois indivíduos que, unidos há tantos anos, se confundiam um no outro. A câmera, contudo, logo se apaixona por Rampling e o filme torna-se apenas dela, desaguando no incrível apogeu da cena final, ao som de “Smoke Gets in Your Eyes”, do The Platters. Com mais de cem títulos no currículo e completando cinquenta anos de carreira, a experiente atriz conquistou sua primeira indicação ao Oscar pelo papel, logo metendo-se na confusão relacionada à campanha #OscarSoWhite, por dizer que boicotar a premiação pela ausência de indicados(as) negros(as) nas categorias principais seria um “racismo contra os brancos”. Apesar da besteira dita, o valor de sua atuação não pode ser desconsiderado. De fato, é ela quem sustenta essa sutil trama, adaptada pelo diretor de um conto assinado por David Constantine.

Muito mais embasada no sentimentalismo dos detalhes do que em grandes acontecimentos ou viradas narrativas e oferecendo a seus protagonistas longos segundos de silêncio reflexivo, esse é um daqueles filmes que muitos colocariam no saco dos “filmes de arte”, como se não houvessem gêneros os distinguindo os diversos tipos.

Claro é que toda a produção é guiada pelo espírito do naturalismo. Cenários e fotografias são baços e discretos. Nada salta aos olhos mais do que o turbilhão emocional vivido pelo casal e as cenas que servem de ponte para conectar o passado com o presente de crise são de grande requinte e maturidade, pois muito bem pensados para serem introduzidos narrativa e imageticamente, seja através de uma foto, um cheiro ou uma lembrança evocada sutilmente. Ainda assim, de certa forma, existe algo do gênero terror na trama de 45 Anos, uma vez que um espírito há tempos enterrado volta a bater à porta de velhos conhecidos, causando problemas difíceis de serem reparados.

Embora não sendo seu último filme (a atriz já aparece com seis futuros projetos engatinhados), Rampling constrói uma belíssima apoteose à sua carreira. No Oscar, o filme também poderia ter sido considerado em outras categorias, incluindo em atuação (de coadjuvante talvez) para Tom Courteney, mas sabemos que a Academia não é muito afeita a filmes dessa escala. Ainda assim, diante de tudo isso, o mínimo que 45 Anos merece é ser visto como muito mais do que apenas um “filme de arte”.

Vinícius Volcof
@volcof

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