Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 02 de março de 2016

O Lobo do Deserto (2014): miscelânea de western com road movie em terras jordanianas

Apesar das falhas pontuais, a direção promissora – aliada a outros elementos técnicos bem desenvolvidos – permite uma atmosfera tocante que compensa a cortina de fumaça feita pelo roteiro em relação ao contexto efervescente.

O que eu noto é que existe uma essência da humanidade que atravessa todas as culturas”, disse Meryl Streep em coletiva de imprensa da Berlinale (Festival Internacional de Cinema de Berlim, presidido por ela no presente ano) quando questionada se está familiarizada com o cinema mundial, e particularmente com filmes da África e do Oriente Médio. Um dos filmes mencionados por ela foi “Theeb”, produção jordaniana (juntamente com Emirados Árabes Unidos, Qatar e Reino Unido) que concorre ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. É culturalmente salutar que uma obra histórica e geograficamente distante chegue ao circuito pátrio, valendo ser visto ao menos a título de curiosidade.

Recebido no Brasil com o nome de “O Lobo do Deserto”, o longa é protagonizado por Theeb (Jacir Eid), garoto que tem a vida alterada com a chegada de um oficial do exército britânico e seu tradutor. Os dois solicitam ao novo xeque, o filho mais velho do falecido Xeque Abu Hmoud, um guia para um poço no Caminho dos Peregrinos, tarefa obscura e arriscada. É designado Hussein (Hussein Salameh), o irmão do meio, para tal mister. O problema é que os três são seguidos por Theeb (o caçula), que acaba aderindo à perigosa jornada por falta de opção.

A zênite do filme, sem dúvida, reside em Theeb (substantivo próprio, mas também substantivo comum, que significa lobo). Jacir Eid não é ator profissional – o mesmo vale para o restante do elenco, exceto para o inglês (Jack Fox) –, mostrando na tela, todavia, uma espontaneidade digna dos experientes. Como personagem, Theeb é encantador: inicialmente, uma criança curiosa, mas seu amadurecimento com o decorrer da narrativa se faz visível. Atento e quieto, a atuação no papel é baseada no olhar, deixando para as falas a exposição da sua imensurável curiosidade (principalmente ao querer saber o que o inglês fala, ou ao fazer perguntas a este enquanto ele se barbeia). Ele é apenas uma criança que se inseriu, proposital e imprudentemente, em uma conjuntura que o obriga a crescer e confirmar tal condição não apenas com o discurso (afirmando não estar com medo) como também por atitudes (manuseando armas, fazendo fogueiras, ficando só etc.).

Diversamente, Hussein é mais adulto – tem até uma noiva –, cabendo a ele cuidar do irmão caçula enquanto o mais velho tem responsabilidades mais amplas. Hussein também tem seu lado criança, o que aparece na cena que retrata os dois brincando, contudo, cabe a ele a proteção de Theeb, praticamente a sua prioridade. Quando Theeb ressalta que Hussein não é seu pai (objetivando destacar que pode tomar as próprias decisões), ele releva a fala, comprovando a maturidade.

O prólogo do filme consiste numa citação bastante emblemática assentada em duas temáticas que lhe são centrais. A primeira delas é a hospitalidade, que justifica diversos atos dos membros da tribo – aliás, Hussein se refere ao inglês e ao seu tradutor como hóspedes, embora a tribo seja nômade. A outra matéria é a morte, sempre vista lateralmente por Theeb, mas cada vez mais de perto (sempre rondando o protagonista), praticamente desde a primeira cena, representada por uma lápide, e simbolicamente de outras formas (pelas armas, cada vez mais presentes no cotidiano do garoto, e pelas diversas mortes a que assiste).

O roteiro deixa a desejar à medida que torna o contexto efervescente algo menor, para dar maior espaço (na verdade, todo o espaço) para a empreitada de Theeb. De forma coerente, a ótima direção adota a perspectiva do infante, colaborando para a cortina de fumaça em relação à conjuntura bélica – no âmbito da Primeira Guerra Mundial, os árabes lutavam contra o Império Otomano pela independência da região, o que se designou como Revolta Árabe. É um sacrilégio abster-se da contextualização!

Faltou um roteiro mais denso. Não obstante, a boa montagem, a trilha sonora coerente e a bela fotografia (incrivelmente em filme de bitola de 16mm) compensam a neutralidade do plot. O promissor diretor Naji Abu Nowar – em trabalho claramente inspirado no clássico “Lawrence da Arábia” – falhou em sequências mais intensas, em especial quando encontram água potável e na cena da escalada, desperdiçando o potencial dramático dos momentos. Errou também no exagero do tom heroico dado no epílogo. Porém, não se pode negar a atmosfera tocante que consegue criar, extraindo do roteiro o que lhe foi permitindo, criando uma miscelânea de western com road movie que atinge seus objetivos.

Diogo Rodrigues Manassés
@diogo_rm

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