Cinema com Rapadura

Críticas   terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Deadpool (2016): um insano e divertido esforço máximo da Fox

O mercenário tagarela do universo mutante finalmente ganha seu longa, depois de uma participação apagada no primeiro Wolverine, onde teve sua boca literalmente costurada. Ryan Reynolds finalmente pôde viver o personagem do jeito que queria, basicamente um Pernalonga sociopata e fortemente armado, em um filme anárquico, divertido e subversivo, mas que pode alienar os não-iniciados.

Durante “Deadpool”, o personagem-título, vivido por Ryan Reynolds, repete várias vezes que ele pode até ser super, mas não é um herói. Entretanto, o esforço de Reynolds e do diretor Tim Miller (estreante no comando de longas live-action, mas indicado a o Oscar pelo curta animado “Gopher Broke”) para trazer o mercenário tagarela para as telas só pode ser descrito como heróico, envolvendo até mesmo um pouco de malandragem, com o vazamento de uma filmagem teste para que a Fox visse o potencial do filme.

Criado em 1991 por Rob Liefeld e Fabian Nicieza inicialmente como um antagonista dos Jovens Mutantes, Deadpool tem quase a mesma idade do seu espectador-alvo. Embora tenha herdado as características “massavéio” de seus contemporâneos dos anos noventa – especialmente no fato de lembrar muito personagens mais antigos -, ele ganhou o coração do público com seu jeito maluco, quebras da quarta-parede e humor insano.

A popularidade de Deadpool pode ser confirmada nas convenções de quadrinhos pelo mundo, como na brasileira Comic-Con Experience, onde inúmeros cosplayers homenageiam o personagem. E é pra esse público que o filme descaradamente joga.

A história de origem do personagem, com o ex-militar e agora mercenário Wade Wilson tornando-se Deadpool após se submeter a um procedimento que lhe daria o fator de cura necessário para ser curado do câncer que estava lhe matando. Enganado pelo responsável pelo laboratório, Ajax (Ed Skrein), Wade tem sua vida destruída e embarca em uma jornada de vingança, armado com sua quase imortalidade, um senso de humor que beira a loucura e suas habilidades para causar destruição.

Superficialmente, o roteiro da dupla Rhett Reese e Paul Wernick (“Zumbilândia”) parece ser a história de origem mais genérica do mundo, mesmo contada fora da ordem cronológica. Herói conhece garota, tem uma vida feliz, é traído por vilão, vilão sequestra a mocinha, herói vai tentar resgatá-la ao lado de parceiros. Diabos, a fórmula é inclusive a mesma de “X-Men Origens: Wolverine” (onde Reynolds fez sua primeira e frustrada tentativa de emplacar Deadpool).

No entanto, desde os ótimos créditos iniciais, Reese e Wernick subvertem todos os chavões de filmes de ação e de super-heróis justamente por fazerem com que Deadpool (não Wade Wilson) ficasse ciente de que é um personagem ficcional e parte do universo cinematográfico dos X-Men, sobrando piadas não só sobre o fato de que, dos pupilos de Charles Xavier, apenas Colossus (em CGI, com voz de Stefan Kapicic) e a novata Míssil Adolescente Megassonico (Brianna Hildebrand) aparecem, mas também para o próprio estúdio e para o orçamento do filme (US$ 60 milhões, pouco mais de um terço daquele da primeira aventura-solo de Wolverine).

Nisso, o timing cômico de Ryan Reynolds pôde ser explorado em sua plenitude, com o ator entregando suas falas como se fosse uma metralhadora de referências, profanidades e desmembramentos. Nascido pra viver o personagem da maneira certa, o ator confortavelmente encarna todas as facetas do mercenário, das mais violentas até às mais bregas (vide seu amor pela música “Careless Whisper”).

Mas o verdadeiro milagre que Reynolds fez aqui foi tornar Wade Wilson tão interessante quanto Deadpool. A química entre ele e Morena Baccarin, que faz a prostituta Vanessa, namorada do mercenário, faz com que o público acredite e invista no relacionamento entre eles, muito por conta do charme da atriz, que transforma Vanessa em uma figura tão quebrada quanto o próprio Wade. A cena em que os dois trocam traumas de infância remete a “Máquina Mortífera 3” e a sequência que mostra o namoro dos dois através dos feriados já é antológica.

Não é só o fato daquele homem que se gabava de seu histórico de mortes agora só fazer trabalhos defendendo os indefesos que chama a atenção no mercenário, mas o carinho genuíno que ele tem para com sua cara-metade. A justaposição das maluquices de Deadpool e os momentos mais ternos de Wade dão credibilidade à loucura do anti-herói e tornam suas motivações mais críveis.

Ed Skrein abraça a sandice e torna o seu Ajax um babaca unidimensional de marca maior, fazendo valer a máxima de Wade de que ele é um cara mau que caça caras ainda piores. Três outros sidekicks dos quadrinhos de Deadpool também surgem de maneiras bem divertidas como o melhor amigo de Wade, Fuinha (T.J. Miller) e a cega Al (Leslie Uggams), além de outro que não entregarei quem é, que aparece rapidamente em uma divertida ponta.

Colossus surge aqui com o seu sotaque russo típico dos quadrinhos (mas ausente de suas aparições anteriores no cinema) basicamente como grilo falante blindado e gigante de Deadpool, tentando ser a consciência dele – e falhando miseravelmente. Já Míssil Adolescente Megassonico é a representação da audiência jovem e cínica – e que bom ver uma heroína adolescente que não é sexualizada de modo nenhum (o filme inclusive brinca com isso, mostrando Deadpool tendo pena de quem quer que for tentar aliciar a garota).

Tim Miller também comanda as cenas de ação com uma energia única, mixando violência e humor físico em sequências bem divertidas e que, mesmo montadas quase que exclusivamente a partir de planos curtíssimos, jamais se tornam confusas. Os efeitos especiais também são competentes e temos aqui a mais fiel versão de Colossus fora dos quadrinhos, melhor que nós três longas anteriores dos X-Men onde o personagem apareceu.

Existe no roteiro, uma faca de dois gumes. Mais da metade dos diálogos (e várias gags visuais) de “Deadpool” exigem um certo entendimento da cultura pop dos últimos 30 anos para total compreensão, mostrando que o filme realmente foi feito com uma audiência específica em mente.

Aqueles que entenderem as referências (#CapitãoAméricaFeelings) vão embarcar tranquilamente nas piadas, mas o público “civil” pode acabar boiando em muitas cenas. Considerando que a última encarnação do Deadpool nos cinemas pecou por descaracterizar excessivamente o personagem e alienar os fãs deste, o filme – claramente calcado na fase Joe Kelly/Ed McGuiness – pode ser encarado como um ótimo e divertido pedido de desculpas para esse público.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

Compartilhe