Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 20 de outubro de 2015

Perdido em Marte (2015): Robinson Crusoé em Marte

Melhor filme de Ridley Scott em anos, está adaptação do livro homônimo de Andy Weir se revela um filme emocionante, relevante e surpreendentemente divertido.

imageEm 1964 foi lançado um filme sci-fi pela Paramount intitulado “Robinson Crusoé em Marte”, o qual (mais ou menos) transferia as desventuras do notório náufrago (com outro nome) e de seu indefectível companheiro Sexta-Feira para a superfície do planeta vermelho. Sem dúvida inspirado por este longa cult, o escritor Andy Weir lançou em 2011 o livro “Perdido em Marte”, mas aproximando os predicados sofridos pelo seu protagonista à nossa realidade – o que eliminou também a presença de um companheiro nativo, obviamente.

Com direção de Ridley Scott e roteiro de Drew Goddard (da série “Demolidor“), esta ótima adaptação da obra literária homônima de Weir não perde tempo para fazer jus ao seu título, rapidamente mostrando como o astronauta/botânico Mark Watney (Matt Damon) foi deixado em Marte por seus companheiros que, liderados pela competente Comandante Lewis (Jessica Chastain), o julgavam morto após uma inesperada tempestade.

Literalmente o único homem naquele mundo frio e desértico, sem conseguir comunicação com a NASA, Watley tem que se virar para fazer com que os suprimentos que possui a mão durem até um possível resgate, que pode demorar até quatro anos. Na Terra, a Agência Espacial Americana percebe que ele sobreviveu ao incidente e tenta encontrar um meio de salvar o náufrago espacial, esbarrando nos mais diversos problemas.

Durante boa parte da projeção, Matt Damon contracena com o nada, gravando um diário de bordo em seu habitat artificial na esperança de fazer uma crônica de sua inesperada e prolongada estadia em Marte. Esses diários funcionam como uma quase quebra da quarta parede, permitindo que o público se afeiçoe rapidamente ao protagonista, tendo em vista que ele está, de fato, falando conosco sem esperar qualquer resposta.

O carisma de Damon faz com que o esperto Watney, mesmo sem revelar muito sobre se mesmo, se transforme em um herói simpático e humano. Nos alegramos com suas pequenas vitórias e, reconhecendo rapidamente o espírito otimista do astronauta, nos desesperamos junto dele quando as coisas dão errado.

Nisso, entramos no tema central da obra: empatia. Sem assistir a fita, muitos a comparam a predecessores recentes do gênero sci-fi, como “Gravidade” e “Interestelar”. Embora neste último Matt Damon também faça um náufrago estelar, as semelhanças entre os três filmes são circunstanciais. Enquanto “Gravidade” era sobre um difícil (re)nascimento e “Interestelar” apresentava ambições metafísicas mescladas em seu conteúdo científico, “Perdido em Marte” é, sobretudo, uma obra sobre empatia e como ela pode avançar nossa civilização.

Sua mensagem é um tanto utópica em seu conteúdo, mas relevante nos tempos belicistas de hoje. Um conjunto de pessoas de diversos países e ideologias se unem para tentar salvar um único homem, avançando dando um grande passo para a humanidade, científica e moralmente falando. Ao mesmo tempo que “Perdido em Marte” conta uma história menor em escala que o filme de Nolan, o longa de Scott ousa ser otimista não apenas sobre o futuro tecnológico imediato do planeta, mas também quanto à consciência de seus habitantes.

Os personagens em Terra também são bastante marcantes, com destaque para Jeff Daniels, que vive Sanders, o pragmático Diretor da NASA. Daniels defende seu personagem de um modo que compreendemos o peso em suas costas e as decisões que toma, sem vilanizar o homem que tem de tomar as decisões difíceis – algo que aconteceu com Oliver Platt no fraco “2012”, por exemplo. Um homem bom usando uma coroa pesada, obrigado a colocar na balança a vida de Watney, o futuro das missões à Marte e a segurança dos demais astronautas.

O sempre competente Chiwetel Eijofor encarna o interessante Vincent Kapoor, um cientista racional que tenta fazer o impossível junto a sua equipe – e é dele uma das melhores falas sobre religião do longa. Em um papel menor, Sean Bean tem uma participação marcante como Mitch Henderson, chefe dos astronautas que tem um relacionamento quase que paternal com seus subordinados e confia piamente no julgamento destes. Para os fãs de “O Senhor dos Anéis” há ainda uma ótima gag em uma cena envolvendo o eterno Boromir.

Os astronautas colegas de Watney, mesmo tendo suas personalidades bem definidas, ganham relativamente pouco tempo de tela, com Jessica Chastein e o divertido Michael Peña conseguindo se sobressair dentro da narrativa justamente por seus personagens terem um relacionamento mais próximo com o membro perdido da tripulação.

Ridley Scott foi feliz em pautar a narrativa na realidade. Usando “Apollo 13 – Do Desastre ao Triunfo” (1995, Ron Howard) como modelo – inclusive referenciando diretamente uma cena daquele filme -, Scott criou um universo absolutamente verossímil, aproximando aquele mundo do nosso, o que por consequência aproxima Watney de nós.

Sua visão de Marte é âmpla, com o uso do 3D intensificando a solidão do protagonista e a sensação de claustrofobia dentro da unidade de habitação. Interessante notar a paleta azulada utilizada em algumas cenas na Terra, gerando uma sensação idealizada e alienígena ao mesmo tempo.

Melhor filme de Scott em anos, o diretor entrega um filme emocionante, relevante e surpreendentemente divertido, equilibrando drama e o humor de maneira soberba, encontrando ainda tempo para apresentar uma bela seleção musical (embora Watney discorde) e o uso mais inteligente de uma música de David Bowie na história recente do cinema. “Perdido em Marte” mantém o ótimo nível que os grandes longas de ficção científica vêm apresentando nos últimos tempos e, mais importante ainda, nos faz ter um pouco de fé no futuro da humanidade quando o presente nos dá tão poucos motivos para tanto.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

Compartilhe