Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 14 de fevereiro de 2015

Cinquenta Tons de Cinza (2015): entre o abuso e o fetiche

Baseado no livro homônimo de E.L. James, este filme se mostra deveras perigoso ao confundir fetiche e abuso, romantizando um comportamento criminoso sem dar o devido peso ao que mostra em cena.

Originalmente concebida como uma fanfic (ficção feita por fãs) da franquia “Crepúsculo”, “Cinquenta Tons de Cinza” alçou vôo próprio e ganhou notoriedade por inserir na literatura de massa contemporânea temas “polêmicos”, como sadomasoquismo e sexualidade feminina. Tais aspas se referem ao fato de que tais assuntos nunca deixaram de ser comentados nas mais diversas mídias, mas a autora E.L. James os trouxe a tona para o público mainstream, mesmo que através de uma escrita cuja qualidade está longe de ser unanimidade.

Obviamente, com o sucesso comercial do livro – posteriormente uma trilogia -, a versão cinematográfica da história de Ana e Christian era uma questão de tempo, vindo com o filme homônimo, dirigido por Sam Taylor-Johnson (do eficiente “O Garoto de Liverpool”) e roteirizado por Kelly Marcel (do fraco “Walt nos Bastidores de Mary Poppins”). Embora, por diversas razões, tenha sido importante manter um comando feminino nas duas posições centrais do projeto, a decisão se mostrou inócua no resultado temático, mas me adianto.

A trama é focada no relacionamento entre Anastasia “Ana” Steele (Dakota Johnson) e Christian Grey (Jamie Dornan). Ela, uma jovem estudante de literatura. Ele, um empresário de sucesso que se tornou bilionário aos 27 anos de idade. Após se conhecerem quando Ana entrevista Grey para o jornal de sua universidade, os dois sentem uma atracão à primeira vista. Mas a necessidade quase que patológica de controle absoluto que Christian sente, inclusive e especialmente sexual, faz com que a relação se torne turbulenta e até perigosa para Ana.

Como de costume em adaptações cinematográficas de livros de sucesso, fica o aviso ao caro leitor de que os filmes são obras independentes, com o longa devendo ser capaz de sustentar a si próprio do ponto de vista narrativo.

Durante a projeção, o DNA de Stephanie Meyer se faz presente em vários momentos. A heroína virginal que se vê obrigada a abrir mão de algo importante para ficar com seu problemático objeto de desejo, um “atormentado” homem rico e bonito. Substitua a problemática do vampirismo por sadomasoquismo e fica difícil distinguir Anastasia Steele e Bella Swan.

Luxúria é uma das coisas mais difíceis de se interpretar, até por ser uma emoção extrema e fácil de ser arruinada através do exagero. Mas os personagens centrais do enlace (com o perdão do termo) são absolutamente apáticos. Ana e Christian não passam de meros estereótipos genéricos, com Dakota Johnson e Jamie Dornan representando recortes de papelão insossos em interpretações monótonas e sem brilho. Ao menos Christian possui alguma vantagem em relação a Edward por exibir algum nível de cultura e, até onde sabemos, não beber sangue humano…

Fisicamente sim, há uma entrega por parte dos atores, especialmente por Johnson, que exibe uma beleza que – ainda bem – passa longe da perfeição plástica pregada por tipos como Michael Bay. Mas não há química entre Johnson e Donan que carregue essa entrega, especialmente com os dois travando diálogos que fazem com que aqueles escritos por George Lucas na saga “Star Wars” para Anakin e Padmé se tornem dignos de comparações com sonetos de Shakespeare.

Inexiste, por parte de Sam Taylor-Johnson ou do diretor de fotografia Seamus McGarvey (“Os Vingadores”, “Godzilla”), qualquer ousadia do ponto de vista visual, nenhuma vontade de transgredir ou instigar. É quase como se o filme dissesse “eu lido com temas tabus, mas não vou te chocar ou te desafiar a pensar ou refletir em momento algum”. É uma forma pobre e perigosa de lidar com a relação central do filme, justamente por não dar o devido peso aos atos de Christian e às decisões tomadas por Anastasia.

Por mais que as cenas de sexo sejam tecnicamente bem realizadas e vejamos, no decorrer do filme, valores de produção elevados, o significado do que se vê em tela é vazio, restando algumas metáforas bobas e quase cômicas, como a chuva deixando Ana molhada (aham) após seu primeiro encontro com Christian ou a moça levando à boca, de maneira “sedutora” um lápis com o nome do moço (e este é apenas um dos objetos fálicos com o nome de Christian que surgem no decorrer da história).

Examinando mais a fundo o roteiro, o que encontramos é um guião desprovido de qualquer arco narrativo definido centrado no relacionamento tóxico entre duas pessoas aborrecidas, onde uma suporta os abusos de outra em prol do fetiche deste, sem sorver qualquer prazer destes atos. No final, o que temos é uma situação de violência doméstica romantizada, onde rezamos que Ana fuja o mais rápido possível de seu perseguidor. O que não deve acontecer, pois existem mais dois filmes desta história a serem produzidos…

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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