Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 22 de novembro de 2014

Irmã Dulce (2014): aquém de seu potencial, cinebiografia não impressiona

Um irregular estudo de personagem que acaba encontrando obstáculos ante suas próprias pretensões.

Maria Riirmãdulceta de Sousa, mas conhecida por seu nome religioso Irmã Dulce, foi uma emblemática figura católica do país e conhecida no mundo inteiro, sendo beatificada pelo Papa Bento XVI em 2011. Nascida em Salvador/BA, a “Bem-Aventurada Dulce dos Pobres” realizava trabalhos sociais e caridosos desde a infância, quando se sensibilizava com a dura realidade das classes menos favorecidas em sua cidade. Já na juventude, trazia doentes e necessitados para dentro de casa, acolhendo-os com o pouco que tinha. Ao longo da vida, ajudou a criar diversas instituições filantrópicas e passou a ganhar notoriedade e exercer influência sobre milhões de pessoas.

Meu maior receio ao entrar para a sessão de “Irmã Dulce”, portanto, era que o longa não soubesse equilibrar seu tom narrativo de modo que o lado humano e altruísta da protagonista acabasse empalidecendo diante de seu lado religioso, tornando-se um filme dogmático e não um estudo de personagem. Evidente que, sendo ela quem foi, era inevitável que este lado aparecesse com relativa força, mas me deixa aliviado constatar que de fato os realizadores souberam equilibrar tal tom com razoável eficiência, ainda que, apesar disso, a fita tenha seus problemas.

O primeiro ato do filme é excelente. A construção inicial da personagem é muito bem feita, com flashbacks pontuais da infância de Maria Rita que dialogam perfeitamente com a presente Irmã Dulce, entrando para o convênio e sendo observada com felicidade pela família. Como já citado, desde pequena a menina demonstrava vocação para o altruísmo, e o longa sabe colocar isso com delicadeza. Altruísmo este que encontra ressonância na relação com o menino João, um garoto de rua doente deixado na porta da instituição, que ela desafia para cuidar. É nessa relação dos dois, ainda que por vezes conturbada, confusa e mal explorada,  que reside as principais qualidades da fita.

A partir de então, todavia, o diretor Vicente Amorim adota uma estrutura de passagem de tempo cada vez menos orgânica à narrativa, fazendo uso de saltos temporais que provocam certo distanciamento do espectador para com a protagonista, e deixando buracos que prejudicam a compreensão, especialmente do alcance/influência, de sua jornada. Em dado momento, Irmã Dulce passa a ser reverenciada no país inteiro, e a força de tal reverência se dissipa quando o filme não trabalha no sentido de maximizá-la, quase como se precisasse de um conhecimento prévio e externo do espectador para que este fizesse algum sentido.

O embaraço com a linha narrativa acaba por prejudicar mesmo aquilo que o filme tinha de melhor, a relação entre ela e João. Com os hiatos temporais fica difícil manter o sentimento de afetividade e proximidade pelos dois que nutríamos no início da projeção. Mesmo assim, a mensagem de redenção final envolvendo uma subtrama entre eles é das coisas mais bonitas do longa. Talvez até melhor do que aquelas grandes propostas pelos realizadores e que acaba não funcionando pela maneira artificial com que são colocadas.

De todo modo, “Irmã Dulce” é razoável, acima da média do que costuma sair no circuito nacional durante o ano. Entre erros e acertos, entre um saldo temporal e outro, é uma obra que poderia ser bem melhor caso não acabasse por se perder nas próprias pretensões, a principal deles de querer encaixar a jornada de toda uma vida em protocolares 90 minutos.

Arthur Grieser
@arthurgrieserl

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