Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 29 de agosto de 2014

A 100 Passos de um Sonho (2014): uma carismática jornada de superação

Carisma da história e dos personagens, além da parte técnica afiada, dão o tom de um longa previsível, mas que obtém êxito naquilo que se propõe.

Doce, divertid100 passoso, previsível, dramático, romântico, eficiente; adjetivos poucas vezes reunidos juntos para classificar um mesmo filme. Neste “A 100 Passos de um Sonho” isso acontece e, se não fosse um roteiro um tanto quanto formulaico e adotando soluções clichês para os principais arcos, o resultado poderia ser ainda mais fascinante. Apesar disso, o êxito é alcançado de forma mais do que satisfatória.

Escrito por Steven Knight a partir do romance de Richard C. Morais, o longa conta a história da família indiana Kadam que, após sofrer com um incêndio traumático no restaurante onde todos trabalhavam em seu país natal, que acabou por ocasionar a morte da matriarca da família, resolve se mudar para a Europa em busca de uma vida melhor. Após um tempo mal sucedido na capital inglesa, eles seguem vagando estrada afora pelo velho continente sem muito rumo, mas em busca de um lugar para se instalarem.

Tudo muda quando, no meio do caminho, o freio do carro falha e eles se veem presos no alto de uma cidadezinha pacata do interior da França. Ajudados pela bela Marguerite (Charlotte Le Bom), que os leva à cidade e os dá abrigo e comida para passar a noite, é lá que eles decidem ficar de vez, abrindo novamente seu negócio. O problema é que no vilarejo já existe um conceituado restaurante administrado pela dura Madame Mallory (Helen Mirren), e onde Marguerite trabalha, resultando em uma forte e, por vezes, desleal concorrência.

Apesar do numeroso grupo com potenciais protagonistas, é Hassan, o filho do meio, quem se destaca desde a primeira cena, um flashback que mostra sua elevada sensibilidade gastronômica desde garoto, e assume este papel. Cozinheiro principal do estabelecimento temático da família, o jovem logo desenvolve uma relação com a moça que os ajudou na chegada à cidade, e desperta o interesse da concorrência, que vê em suas habilidades culinárias o principal motivo que leva tanta clientela ao Maison Mumbai.

Adotando uma abordagem dinâmica e segura, o longa é conduzido pelo experiente diretor sueco Lasse Hallström, responsável por filmes como “Um Porto Seguro” (2013), “Querido John” (2010), “Sempre ao seu Lado” (2009) e o espetacular “Gilbert Grape” (1993), que rendeu a Leonardo DiCaprio, ainda garoto, sua primeira indicação ao Oscar. Apoiado por uma fotografia absolutamente espetacular de Linus Sandgren, Hallström cria planos memoráveis ao longo das quase duas horas de projeção (aquele que enquadra, de cima e distante, a chegada da família à vila, ajudados por Marguerite, é, em especial, fantástico) e se mostra confortável na posição que detém, comprovando mais uma vez que possui total controle da linguagem cinematográfica e seus processos.

Apesar de concepções simplistas, é inegável que o roteiro de Steven Knight é habilidoso quando se propõe a transitar entre o drama e o humor. É interessante notar como há uma mistura de sentimentos aqui presentes. Por vezes nos deparamos com situações realmente densas, mas que são logo seguidas por uma sequência mais leve e com um humor sutil (e vice-versa), e isso é conduzido de modo orgânico, sem parecer artificial ou forçado em nenhum momento. Mérito também, além da trilha eclética e que pontua bem as variadas facetas do longa, do experiente montador Andrew Mondshein, que estabelece cortes inteligentes, com rimas visuais e sempre narrativamente precisos. Ele que, assim como o diretor, também participou de obras importantes ao longo da carreira, como o já citado “Gilbert Grape” e “O Sexto Sentido” (1999).

Em que pese os vários acertos colocados, o burocrático script infelizmente prejudica o todo. Partindo de estereótipos na construção de seus personagens principais, em especial Madame Mallory (em uma boa composição de Helen Mirren) e o patriarca da família Kadam, os pontos de virada são previsíveis e estabelecidos de forma pouco sutil. A mudança de postura de chefe do restaurante rival, por exemplo, é realizada sem qualquer justificativa plausível aparente. A partir dali, já sabemos mais ou menos como o resto da trama se seguirá e de fato isto se comprova.

Aliás, olhando a ficha técnica do filme, fica fácil perceber algumas das principais qualidades e defeitos que aqui presenciamos. Com Steven Spielberg e Oprah Winfrey encabeçando a produção, basta imaginar o que há de mais estereotipado na carreira e nos ideais de ambos. A história de uma família humilde estrangeira chegando em um ambiente hostil onde terá que superar todas as dificuldades e preconceitos. É um fio narrativo realmente bonito, mas que, se conhecermos um pouco sobre a filmografia do genial Spielberg e das lutas incansáveis de Winfrey, sabemos sem muita dificuldade como os o elementos se desenvolverão. Neste sentido, “A Cor Púrpura” (1985) é uma ótima referência, apesar de ser uma obra cuja essência é muito mais densa (e histórica!) do que a atual.

Assim, “A 100 Passos de um Sonho” nos apresenta uma trama carismática, bonitinha, divertida, romântica e que funciona em sua premissa básica. Mesmo que previsível, é sempre bom acompanhar uma história de superação, ainda mais tendo em vista a parte técnica tão apurada e os realizadores que encarnaram o espírito a ponto de entregarem um trabalho honesto e de qualidade.

Arthur Grieser
@arthurgrieserl

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