Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 09 de agosto de 2014

O Casamento de May (2014): sobre as indas e vindas da vida

Um drama familiar que não se resume a discutir apenas dogmas religiosos e suas amarras, indo muito além disso.

O Casamento de MayÉ curioso que um filme como este “O Casamento de May” chegue ao circuito justamente em um período onde as tensões entre Palestina e Israel, ou seja, judeus e árabes, esteja em um nível tão elevado, talvez jamais antes presenciado. Não que a trama gire em torno disso, mas dogmas religiosos – e as amarras ocasionadas por estes – contextualizam todo o cenário vivido pelos personagens, servindo como pano de fundo importante para um denso drama que vai muito além dessas questões, ainda que sua narrativa seja leve e quase descontraída, construindo uma composição realmente prazerosa de acompanhar.

Escrito, dirigido e protagonizado pela bela Cherien Dabis, o longa conta a história de May, uma jovem de família católica que vive em Nova York e é noiva do intelectual muçulmano Ziad (Alexander Siddig). Desenvolvendo-se a partir do momento em que a protagonista pisa na Jordânia para a festa de casamento, país onde mora toda a sua família e também de origem do futuro marido, acompanhamos as relações conflituosas que regem aquele ambiente familiar tão particular. Seja dela com a mãe (Hiam Abbass), que implica com o seu casamento pela orientação religiosa do noivo, com as irmãs que, apesar de serem aparentemente bem resolvidas, também possuem seus atritos internos, com o pai (Bill Pullman) divorciado e sua nova namorada ou mesmo com o charmoso Karim (Elie Mitri), homem que acabara de conhecer.

Assim, é interessante notar como, apesar de todo o contexto favorecer tal abordagem, a história não é sobre religião ou qualquer coisa do tipo. Sim, algumas reflexões neste sentido são inevitáveis, como na belíssima cena onde May e a irmã Dalia (Alia Shawkat), banhando-se no Mar Morto, fazem profundas reflexões acerca das futilidades que levam nossa vida adiante enquanto guerras mortais são travadas logo ali na linha do horizonte, mas não é isso que move a narrativa. O longa é sobre aquela desestruturada família, composta de indivíduos complexos e com relações entre si mais complexas e desestruturadas ainda. Um filme sobre relações humanas, independente de qual motivo haja por atrás destas conexões.

À primeira vista, tais características podem soar um tanto quanto pretensiosas, possivelmente resultando em uma experiência pesada, mas não é o que ocorre. Mesmo que não tenha exatamente um “alívio cômico” como costumam ter as grandes “dramédias” americanas, o longa possui uma atmosfera descontraída desde o início, com tiradas sutis e um humor refinado e divertido, que em nenhum instante joga a narrativa para um lado caricato ou galhofa. É apenas parte dela, pontuado na maioria das vezes por uma trilha sonora que reforça esse elemento, discreta e cativante.

Do ponto de vista técnico, aliás, a fita também é extremamente consistente. A direção de arte constrói cenários críveis e condizentes com a realidade religiosa daquela família, especialmente da mãe, cristã fervorosa. A fotografia de Brian R. Hubbard faz questão de sempre filmar planos em que May esteja destacada, normalmente no centro da imagem e fazendo uso de lentes que privilegiem tal ênfase. Além disso, aproveita bem as vastas paisagens proporcionadas por um lugar tão exótico, apesar de ter sentido falta de mais sequências nas ruas, no meio das apinhadas feiras comerciais, ilustrando o cotidiano dos cidadãos de Amã. O próprio plano que encerra a projeção, por mais bonito e poético que seja, e realmente o é, deixa esse sabor “agridoce”.

Dessa forma, com um roteiro redondo e que constrói belos arcos dramáticos para todos os seus personagens, e uma atmosfera de descompromisso que tira o eventual peso que o filme poderia carregar, “O Casamento de May” é uma tão divertida quanto densa obra autoral de Cherien Dabis (quem disse que densidade e diversão não podem caminhar juntos?). A cineasta, que já havia escrito e dirigido seu primeiro longa (“Amreeka”, 2009), e agora protagoniza seu segundo, mostra que é uma artista eclética e, acima de tudo, competente.

Esse filme fez parte da programação da Mostra Imovision 25 anos.

Arthur Grieser
@arthurgrieserl

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