Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 30 de maio de 2014

O Lobo Atrás da Porta (2014): medo e dor em um noir suburbano

Em seu longa de estreia, o cineasta Fernando Coimbra já se mostra um autor a ser acompanhando, pintando junto de seu elenco uma tela sombria e dolorosamente humana, onde a inocência parece ser um crime a ser punido.

LoboUm noir suburbano. Essa é a melhor descrição possível para este “O Lobo Atrás da Porta”, escrito e dirigido por Fernando Coimbra, em seu primeiro e impressionaste longa-metragem. Com claras influências de “Rashomon” (1950), de Akira Kurosawa, no desenrolar de sua narrativa, a obra apresenta múltiplos pontos de vista para os mesmos fatos, em um crescendo que prende o espectador e deixa a audiência em um estado de desconfiança permanente em relação aos personagens/narradores.

Após o sequestro de uma menina, os pais da garota, Sylvia (Fabíula Nascimento) e Bernardo (Milhem Cortaz), bem como a amante deste último, Rosa (Leandra Leal), contam suas respectivas versões do que aconteceu para o delegado encarregado (Juliano Cazarré), enquanto a polícia tenta localizar a criança desaparecida. A partir daí, o filme se aprofunda nos sórdidos segredos enraizados neste triângulo amoroso, repleto de mentiras e traições.

Os sentimentos de pânico, desejo, medo e ódio mostrados em cena são universais e dialogam com qualquer nacionalidade e classe social. No entanto, é inegável que, ao situar a história na classe média brasileira, Fernando Coimbra aproxima sua obra de uma realidade comum à maioria da população (e, por consequência, da audiência), tornando a película ainda mais pungente.

Nisso, a direção de arte acaba se mostrando fundamental ao recriar com sucesso ambientes prosaicos e comuns. As locações são gastas, reais, ambientes que podemos ver que são habitados por pessoas, em um belo e necessário trabalho. A fotografia, densa e em cores quase mortas, evoca uma atmosfera pesada, como se o mero ato de se mover fosse difícil naquele mundo, algo apropriado considerando o drama retratado pela fita.

No trio central, temos atuações homogêneas, todas dignas de aplausos. Aos poucos, vemos as verdadeiras faces daquelas pessoas, algo que está longe de ser agradável. Sofrimento e luxúria se misturam em uma tela sombria e dolorosa, pintada pelas performances magníficas de atores dedicados.

Fabíula Nascimento encara a difícil tarefa de expressar um desespero indizível, de uma mãe separada de sua filha e de uma mulher presa em uma vida sem calor. Já Milhem Cortaz e Leandra Leal protagonizam os momentos mais pesados do filme, com os dois defendendo seus papéis com uma entrega admirável.

Não me refiro apenas às cenas de sexo entre Bernardo e Rosa – cujo teor faz parte do próprio arco dos personagens -, mas sim à espiral descendente que os dois embarcam graças ao que parecia um simples caso extraconjugal, revelando a pior face da natureza humana, o homem como lobo do homem, como já colocava Thomas Hobbes.

Coimbra ainda foi inteligente ao inserir, de maneira orgânica, momentos de humor na tessitura da trama, trazendo bem-vindos alívios para o público em meio à tensão sufocante que envolve a projeção, representados pelo cinismo do delegado e pela rápida participação de Thalita Carauta.

Ademais, a justaposição entre esses momentos mais leves (e incluo aí também as cenas onde a criança surge) e o terceiro ato da projeção, onde todas as cartas são colocadas na mesa, resulta em um esmagador soco no estômago do espectador. A coragem exibida por Fernando Coimbra logo em seu longa de estreia o torna um nome a ser acompanhado com bastante interesse. Recomendado.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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