Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 30 de março de 2014

Uma Estranha Amizade (2012): belíssimo encontro de gerações

Desprovido de moralismo, terceiro longa de Sean Baker conta história tocante sobre a amizade entre duas mulheres.

S-posterEvitando o tema da imigração, que marcou suas duas obras anteriores, Sean Baker mantém o seu já tradicional estilo naturalista neste projeto. Sensível e humanista, o cineasta traz um delicado retrato do encontro entre gerações sem parecer artificial, o que por si só já é um grande mérito. Bem conceituado em todos os festivais onde foi exibido, o filme abocanhou prêmios importantes como o Independent Spirit Awards.

Na trama, acompanhamos a improvável (mas não “estranha”, como diz o péssimo título nacional) amizade entre a jovem Jane (Dree Hemingway, bisneta do escritor), de 21 anos, e a senhora Sadie (Besedka Johnson), de 85. Após comprar uma garrafa térmica em uma “venda de quintal” promovida por Sadie, Jane encontra dez mil dólares escondidos no objeto. Ainda que seu primeiro ímpeto seja fazer algumas compras, Jane vai gradativamente se aproximando da velha senhora, em um misto de pena e culpa. Eis que, consequentemente, surge algo mais profundo.

O que torna o projeto realmente fascinante é a performance das duas atrizes novatas. Além de tornarem a relação entre suas personagens totalmente verossímil, em um delicado equilíbrio entre dois universos completamente opostos, ambas conseguem passar um mundo de sentimentos apenas com uma sutil mudança no olhar. Inteligentes ao perceber que o carinho que desenvolveremos pelas personagens terá um importante papel na nossa relação com o projeto, os realizadores não trazem as mágicas (porém irritantes) lições de moral que muitos idosos se orgulham em ostentar e nem transformam a jovem Jane em uma caricatura definida apenas por seu uso de videogames e drogas.

Assim, vemos os diferentes universos ali abordados sem nenhum tipo de preconceito ou julgamento moral. Quebrando estereótipos acerca do mundo frequentado por Jane e seus companheiros Mikey e Melissa, o longa acerta por não fazer pouco da rejeição inicial de Sadie, ressaltando ainda mais que a única coisa que as aproxima é o vazio existencial que compartilham, já que elas têm pouco ou nada em comum.

Baker evidencia seu talento como cineasta logo nos primeiros minutos de projeção, quando consegue transmitir uma quantidade absurda de informações sem precisar recorrer a diálogos expositivos. Dessa maneira, vemos em tela espaços absolutamente evocativos, desde a casa de Sadie com seus muitos objetos carregados de lembranças até a nova residência de Jane, vista no terceiro ato.

O uso abusivo de grandes angulares durante toda projeção, sem nenhum propósito aparente, acaba soando como exercício de estilo vazio. Enquanto emprega lentes que mantém os cantos da imagem enviesados sabe-se lá por qual razão, Baker é brilhante ao incluir uma trilha sonora discreta e que não confere um drama artificial à narrativa, que em diversos pontos flerta com o melodrama.

Mantendo a câmera na mão e a fotografia sempre dessaturada, o diretor acerta ao ambientar sua narrativa sempre no tempo presente. Sem investir nos famigerados flashbacks, a inteligência do espectador é respeitada, permitindo, destarte, que deduzamos acontecimentos por nós mesmos. A maneira como o roteiro consegue prender o espectador com suas reviravoltas também é admirável. A única falha consiste no fato de a “revelação” final destoar completamente do tom semidocumental adotado em toda a produção, revelando-se piegas por querer somente arrancar lágrimas.

É impossível escrever sobre “Uma Estranha Amizade” e não incluir a seguinte observação: Besedka Johnson, intérprete de Sadie, sempre sonhou em ser atriz e esperou sete décadas para ter seu sonho realizado. Alcançando este ponto alto em sua vida, a simpática senhora faleceu em 4 de abril de 2013. As interseções do cinema com a vida real às vezes são inquietantes.

Bernardo Argollo
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