Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Vidas ao Vento (2013): a dor da perversão de um sonho

Amor, sonhos, dever, talento, compromisso e morte. Estes são os delicados temas que "Vidas ao Vento" aborda, de maneira sensível e, ao mesmo tempo, poderosa, nesta animação que deve ser o último filme do já lendário cineasta Hayao Miyazki como diretor.

Cartaz-de-Vidas-ao-Vento-Foto-DivulgacaoExiste um motivo para que protagonistas que tomam atitudes consideradas como antipáticas quebrem a chamada quarta parede e conversem com o público, que é estabelecer uma simpatia e até cumplicidade entre “nós” e eles. Apesar de “Vidas ao Vento” não lançar mão deste expediente, a fita encontra nos sonhos do seu personagem principal um meio de humanizá-lo, mesmo com as devastadoras aplicações de sua arte.

Esta animação retrata, de maneira deveras romantizada, a vida de Jiro Horikoshi, o projetista japonês que liderou a equipe de criação do caça Mitsubishi A6M Zero, máquina de combate que se tornou o símbolo da força aérea japonesa durante a Segunda Guerra Mundial. O roteiro dá maior destaque justamente no período em que ele trabalhou em projetos com aplicações militares, sendo então indireta, mas conscientemente, responsável por diversas mortes.

O diretor e roteirista Hayao Miyazaki mergulha o público nos sonhos do protagonista e, sem medo de tocar em uma ferida tão dolorosa, discute esta questão de maneira direta. Ao lado de uma versão onírica de um dos seus heróis, o projetista italiano Conde Caproni, Jiro debate a natureza bélica e artística da aviação, em francos diálogos norteados pela melancolia.

O jeito gentil e educado do personagem são tão evidenciados quanto seus talentos profissionais, o que resulta em um retrato mais completo e tridimensional. Há ainda um belo momento em que Jiro e seu amigo e colega Honjo discutem sobre a hipocrisia do Império Japonês em gastar tanto dinheiro na indústria bélica enquanto existem crianças famintas nas ruas, discussão esta que, infelizmente, continua atual e bastante pertinente.

O fato de o longa, em suas duas horas de projeção, acompanhar o personagem de sua infância até a idade adulta também o coloca mais próximo ao público. Visto inicialmente com uma empolgação quase infantil em relação ao seu futuro ofício, a audiência continua a enxergar Jiro desse modo mesmo quando ele se torna mais velho e introspectivo. Neste ponto, surge o drama pessoal do protagonista, dividido entre seu dever e compromisso para com a aviação japonesa e os problemas de saúde de sua esposa, a doce Naoko.

A dedicação extrema de Jiro ao trabalho e a abnegação de Naoko, apesar de sua condição, em relação aos esforços do marido, podem parecer estranhos a alguns ocidentais, mas esses são os valores tradicionais japoneses. É impossível negar o amor que um tem para o outro e ambos fazem o possível para apoiar sua cara-metade em suas respectivas lutas, algo que torna a dinâmica entre eles apaixonante.

Com a vida de Jiro como fio condutor, Miyazaki costura habilmente no roteiro eventos históricos da primeira metade do século XX, como o terremoto de Kanto (1923), a Grande Depressão Econômica (1929), a epidemia de tuberculose que acometeu o Japão durante aquele período e, é claro, a aliança entre o Império Japonês e a Alemanha Nazista, com a respectiva atuação das chamadas “polícias ideológicas”.

Os efeitos destes acontecimentos afetam o protagonista de maneira pessoal, o que torna sua jornada ainda mais tortuosa e real. Neste sentido, destaca-se a trilha sonora de Joe Hisaishi, colaborador habitual de Miyazaki, que nos brinda com composições emocionantes, mas que nunca desabam no melodrama.

Tecnicamente, a fita é impecável, com uma animação fluida, uma atenção em detalhes em paralelo (repare os momentos em que Jiro trabalha com seus lápis e régua de cálculo) e o design de personagens tradicional do Studio Ghibli, com a aparência dos “atores” ditando um pouco de suas personalidades, vide os traços mais suaves de Jiro e Naoko e as formas mais caricatas do carismático chefe do protagonista, o baixinho Kurokawa.  As cores acolhedoras e vivas do longa ressaltam o clima nostálgico da produção, com alguns momentos mais tensos e tristes marcados por tons mais etéreos ou ainda distorções nas sombras e na colorização, como na breve perseguição da Alemanha ou na visita a um sanatório para tuberculosos.

As cenas de voo são fabulosas, ajudadas pelo design das aeronaves (mesmo aquelas que existem apenas nos sonhos de Jiro). Ressalte-se que, mesmo com o perfeccionismo do filme em relação ao desenho dos maquinários, ainda há um quê orgânico colocado por Miyazaki, especialmente no comportamento dos motores e nos sons que eles fazem.

Mesmo com a superlativa e homogênea qualidade da animação, destaca-se a setpiece do terremoto de Kanto, momento quase tão devastador quanto a explosão da bomba atômica retratada em “Gen – Pés Descalços”. Aliás, essas animações são meio-irmãs ideológicas, tendo em comum os destruidores efeitos da Segunda Guerra em escalas mais pessoais.

Jiro perdeu muito ao cumprir com seus deveres para com sua vocação, mas continuou em frente. Podemos especular se foi esse o motivo que fez com que Miyazaki, ele mesmo um apaixonado por aviação, escolhesse “Vidas ao Vento” como seu “canto dos cisnes” ou se o autor enxergou algum paralelo entre a sua jornada particular e a de seu protagonista. De todo modo, se for realmente a despedida do mestre, esta aconteceu em grande estilo, em um filme ao mesmo tempo sutil e poderoso, com talento e paixão transbordando da tela a cada quadro. Recomendado.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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