Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 22 de fevereiro de 2014

Clube de Compras Dallas (2013): uma emocionante luta pela vida

Longa conta a história de como um homem comum desafiou a indústria farmacêutica americana.

Sempre que ocorre uma epidemia mundial, algumas informações movimentam as manchetes dos jornais: origem, sintomas, quantidade de vítimas e, na maioria dos casos, a participação da indústria farmacêutica. O mesmo ocorreu, e ainda ocorre, com a AIDS. O diretor canadense Jean-Marc Vallée se juntou aos roteiristas Craig Borten e Melisa Wallack para contar uma história particular, sobre o embate entre uma vítima do HIV e uma das maiores fabricantes de remédios dos Estados Unidos.

“Clube de Compras Dallas” conta a história de Ron Woodroof (Matthew McConaughey), um eletricista texano que, no ano de 1986, descobriu estar com AIDS. Por não conseguir tratamento em sua cidade, ele começou a pesquisar meios alternativos para combater a doença, o que o levou ao Dr. Vass (Griffin Dunne), um médico americano que, depois de perder sua licença, começou a clinicar no norte do México.

Os meios que o médico utilizava eram mais eficazes contra o mal que o AZT, medicamento escolhido pelo governo americano. Com isso, Ron decide “importar” grandes lotes desses medicamentos para começar a vender em sua cidade. Com a ajuda de Rayon (Jared Leto), um transexual que conheceu durante uma de suas internações, ele cria uma espécie de Clube de Fidelidade, em que os associados pagam uma taxa de US$ 400 mensais para ter acesso aos remédios e se tratarem por conta própria.

Como a trama é baseada exclusivamente em Ron e naqueles que o cercam, o diretor não tem medo de mostrar todos os seus defeitos. Ele é um homem preconceituoso, homofóbico, grosseiro, beberrão, viciado em drogas e aproveitador (o próprio fato de começar a ganhar dinheiro, e muito, com o seu “clube” mostra bem isso). Porém, também é alguém inteligente e determinado. Ao se aprofundar em suas pesquisas (viajando por todo o mundo em busca de novos medicamentos e tratamentos), Ron consegue, em pouco tempo, conhecer tudo que há para saber sobre a doença e torna-se apto a discutir em pé de igualdade com os médicos do hospital em que foi diagnosticado, a Dra. Eve (Jennifer Garner) e o Dr. Sevard (Denis O’Hare). E todos os  contratempos encontrados nas viagens, contornados por ele com maestria, produzem alguns dos melhores momentos da projeção, como as várias apreensões de seus produtos e a “perseguição” de um agente federal em torno de suas operações.

Porém, boa parte do trabalho seria perdido caso os atores principais não funcionassem bem, o que felizmente não é o caso: Matthew McConaughey e Jared Leto estão perfeitos. A entrega, especialmente física, com que se dedicaram ao trabalho é compensadora. A aparência cadavérica, devido à acentuada perda de peso, ajuda a suas atuações com total realismo, mas jamais se transforma em uma muleta que disfarce o talento de seus intérpretes. Poucas vezes uma dupla de atores demonstrou tanta química entre si, além do total domínio de seus personagens.

McConaughey realiza um trabalho impressionante. Sua composição de personagem é brilhante, repleta de nuances, como o jeito de andar com as pernas arqueadas devido ao trabalho como peão de rodeio, o modo lento e explicado de falar (exceto nos rompantes de fúria, com um extenso vocabulário de palavrões), em conjunto com sua expressão corporal, transformam Ron em um personagem cativante, ainda que com caráter contestável. A cena em que implora por uma chance de tratamento é um dos seus grandes momentos na carreira.

Já Jared Leto atinge alguns degraus acima de seu parceiro de tela. Sua performance é absolutamente perfeita. O desespero de Rayon em continuar bela mesmo que seu corpo esteja quase em decomposição por conta da doença é tangível. No entanto, ele consegue manter o bom humor e o amor pela vida, até mesmo durante suas crises. Os únicos momentos em que o longa destoa um pouco são aqueles que necessitam de carga dramática de Jennifer Garner. Sua falta de talento chega a ser constrangedora quando comparada a Leto e McCounaghey.

Em seus aspectos técnicos, o filme funciona bem. A montagem utilizada para ilustrar a passagem de tempo é executada de forma orgânica, sem permitir que o longa soe episódico, mesmo que, em alguns momentos, enumere o tempo passado desde a descoberta da doença do protagonista. A competente recriação da época é visível não só pela direção de arte, com os pôsteres nas paredes do escritório ou modelos de carros presentes em cena, mas também pela maquiagem e penteados excêntricos e figurinos exagerados, típicos da década de 80. A fotografia ajuda a completar a mise-en-scène, com destaque para as cores quentes, especialmente vermelho e amarelo, bastante ligadas às emoções que permeiam a fita: ódio, mágoa, frustração e tristeza.

Além de um emocionante estudo de personagens, principalmente por se tratar de uma história real, o filme faz uma pesada crítica à indústria farmacêutica, que muitas vezes induz, por meio de subornos e manobras políticas, o uso de medicamentos pouco eficazes com o intuito exclusivo do lucro, às custas do desespero de pessoas necessitadas. E apenas pela coragem de enfrentar entidades tão poderosas, “Clube de Compras Dallas” já se coloca em um patamar superior.

David Arrais
@davidarrais

Compartilhe