Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 03 de fevereiro de 2014

47 Ronins (2014): épico japonês se perde em versão hollywoodiana

Ao tentar tornar uma história clássica japonesa mais aprazível para o público ocidental, os produtores acabaram por alienar ambas as plateias, no que resultou em um belo espetáculo visual digno dos quase US$ 200 milhões gastos, mas desprovido de conteúdo emocional.

47 RoninsA lenda na qual este “47 Ronins” é baseado é, na verdade, uma história real de lealdade e luta que inspirou gerações da nação japonesa e que, obviamente,  já ganhou diversas versões na sétima arte. A mais recente empreitada neste sentido, no entanto, não fora capitaneada por japoneses, sendo escrita por Chris Morgan (“Velozes e Furiosos 6”), Hossein Amini (“Drive”) e Walter Hamada (produtor dos remakes de “A Hora do Pesadelo” e “Sexta-Feira 13”).

Não é um bom sinal quando tanta gente de estilos diferentes mexem em um roteiro assim. E a necessidade de aproximar a trama das plateias ocidentais acabou por transformar e muito a alma desta produção. Dirigido pelo estreante Carl Rinsch, este primeiro longa do diretor será uma estranha referência para o seu currículo.

Isso porque, a despeito das eficientes cenas de ação (prejudicadas pela ausência de sangue), o filme falha naquilo que é mais básico para uma fita do gênero, que é criar empatia entre a audiência e os personagens. Ao tentar agradar ocidentais e orientais, o texto aliena as duas audiências, algo irônico considerando que isto remete diretamente ao protagonista mestiço criado pelos escritores.

Vivido por Keanu Reeves, Kai foi encontrado quando criança pelo senhor da região de Ako, o honrado Asano (Min Tanaka), e passou a trabalhar como seu serviçal, desenvolvendo uma amor pela filha do nobre, Mika (Ko Shibasaki). Kai vive uma existência solitária, sendo insultado pelos samurais do seu mestre. Até que uma trama nefasta do rival de Asano, o arrogante Kira (Tadanobu Asano), faz com que o Shogun (Cary-Hiroyuki Tagawa) obrigue o nobre a cometer suicídio, o que leva seus samurais a se tornarem ronins, samurais caídos.

Após um ano de escravidão, Kai é recrutado pelo orgulhoso Oishi (Hiroyuki Sanada), antigo líder dos protetores de Asano, para ajudar a vingar o seu senhor caído e resgatar Mika e o povo de Ako das garras de Kira. Mas para fazer justiça, o grupo terá de passar por uma poderosa e maliciosa bruxa (Rinko Kikuchi), serva pessoal de Kira, o que obriga Kai a ter de recorrer a um segredo de seu misterioso passado para dar aos seus companheiros alguma chance nesta batalha.

O ponto forte do longa é, paradoxalmente, o seu calcanhar de Aquiles. O universo proposto na tela é deveras interessante, mostrando um Japão feudal repleto de magia, beleza e perigo. Neste sentido, a direção de arte e a equipe de efeitos especiais acertam em cheio, com locações detalhadas, figurinos e armas lindamente montados e criaturas com designs bacanas. Parabéns para a equipe de Rinch, que obrou maravilhas aqui, utilizando esse visual em cenas de luta complexas e bem coreografadas, com destaque especial para a tensa sequência da invasão à fortaleza de Kira, cena que demonstra de modo econômico que os samurais possuíam outros talentos além de suas habilidades de combate. Plasticamente, tratam-se de momentos belíssimos.

O 3D, pós-convertido, neste caso específico não é recomendado. Embora os momentos com maior iluminação funcionem bem no formato, durante as diversas cenas noturnas, filmadas com câmeras digitais, uma granulação acaba por se sobressair no quadro, o que incomoda o espectador e prejudica a composição dos quadros.

O problema é que não houve tempo hábil para explorar aquele universo, que acaba sendo apenas pincelado, nunca aprofundado. O mesmo ocorre com a personalidade dos ronins. É impossível para o público torcer e se emocionar com os sacrifícios dos guerreiros sem conhecê-los. Seria, obviamente, também impossível desenvolver 47 heróis, o vilão principal, capangas, a mocinha e o universo onde o filme se passa em menos de duas horas de projeção. Mas dar personalidade a apenas quatro ou cinco figuras centrais e esperar que o público não note a falta de identidade das demais figuras é ingenuidade em demasia por parte dos realizadores. A falta de sangue também ameniza as consequências das batalhas, o que diminui ainda mais o impacto das ações vistas em tela.

A inserção de Kai e a justificativa para que o gaijin Keanu Reaves dê vida ao personagem até que funciona. O jeito de cão perdido de Reeves combina com o passado de Kai e o arco do renegado e seu relacionamento platônico com a princesa Mika dão um ar de conto de fadas que se encaixa bem com o clima de magia apresentado, fazendo sentido com a bruxa  sem nome vivida de maneira sadicamente divertida por Rinko Kikuchi.

No entanto, a mistura dessa veia fantasiosa com o conto de honra dos 47 ronins acaba não dando certo, com os dois lados do filme entrando quase que em curto toda vez que se tocam. Faltou a sutileza japonesa de mestres da narrativa como Hayao Miyazaki (muito referenciado visualmente pela produção, aliás) que conseguem dosar o fantástico e o palpável em suas obras.

Fosse este um longa focado apenas em Oishi e seus homens ou uma fantasia dedicada com Kai e Mika ao centro, o resultado possivelmente seria positivo. Do jeito que está, temos uma obra perdida e sem prumo. Uma pena, de fato.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

Compartilhe

Saiba mais sobre