Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O Gebo e a Sombra (2012): um retrato elegante e teatral da pobreza

Manoel de Oliveira prova que, mesmo centenário, ainda tem muito cinema, e também teatro, nas veias.

O Gebo e a SombraO cinema tem uma linguagem própria, desenvolvida ao longo de toda a sua existência como arte. A linguagem baseada na ação é a característica que o diferencia de outras formas de arte como a fotografia, onde não existe o movimento e a sensação de presente e realidade é construída de outra forma, ou a literatura, cujas palavras possibilitam a representação de pensamentos ou mundos interiores infinitos e tão abstratos que por vezes seriam quase impossíveis de serem filmados.

Há uma forma de arte, entretanto, que talvez nunca deixe de ser comparada ao cinema: o teatro. Baseado, principalmente, na linguagem das palavras para expressar sentimentos e ações, o teatro e suas diferenças com o cinema caberiam, por si só, estudos inteiros e discussões para outros textos. O que se torna mais interessante não são suas distinções, mas como, às vezes, cineastas fundem as duas formas de arte de maneira a produzir algo único, como é o caso de “O Gebo e a Sombra”.

No novo filme do premiadíssimo diretor Manoel de Oliveira, o diálogo é o principal fio condutor. Durante seus 90 minutos, parece que estamos em uma peça. Baseado justamente em uma montagem homônima, o longa apresenta a história de Gebo, um contador já idoso que mora com sua mulher, Doroteia, e a nora, Sofia. Enquanto seu filho está ausente, ambas aguardam esperançosas seu retorno, mas Gebo parece guardar algum segredo sobre seu paradeiro. Quando João volta à casa, então, suas ações se revelam com consequências desastrosas.

Exceto a primeira cena, que se passa em um cais, e outros pequenos planos, a produção se desenvolve toda dentro dos cômodos da pequena casa de Gebo. A difícil situação econômica da família é bem representada pela fotografia que se utiliza de cores desbotadas tanto no cenário como nos figurinos, dando um tom de certa monotonia e desesperança. A pouca iluminação, realizada em tons de âmbar, emulando as velas e lampiões presentes (não há data estabelecida na narrativa, mas supõe-se que seja próximo da virada do século XIX para o XX) favorece a formação de um ambiente sombrio, por seus segredos, mas um tanto humilde e aconchegante.

Neste cenário, parecemos estar todo o tempo de frente para um palco, com atores entrando e saindo de cena pelas portas que acabam em outros cômodos. Apesar disso, a ilusão da diegese é mantida pelos discreto, porém efetivo, trabalho de som, que contribui para maior ambientação com o som opressor da chuva ou das panelas na cozinha.

O caráter teatral também é reforçado pela direção segura do português centenário, que mantém a câmera estática todo o tempo como se apenas observasse atentamente o desenrolar dos fatos perante a si, enquanto planos médios em um ambiente pequeno e cheio de personagens torna o clima claustrofóbico. A montagem, também econômica, trabalha com o diretor para manter a fluidez e o clima contemplativo, com pouquíssimos cortes, destacando-se as evidentes, mas elegantes elipses temporais que trabalham com um contraste de planos parecidos em situações diferentes do dia, como uma janela fechada à noite e, a mesma, aberta durante a tarde.

Mas o roteiro é a principal referência ao teatro. Os diálogos não hesitam em expor o pensamento dos personagens ou mesmo descrever ações que outros realizam, o que, em padrões cinematográficos, seria preferível ser mostrado ao invés de simplesmente descrito. Com a atuação de pesos-pesados do cinema europeu como Michael Lonsdale e Claudia Cardinale, o segredo está nas sutilezas. Do simples desviar de Gebo que esclarece sua mentira às poses sempre inquietas e contraídas de Doroteia, insatisfeita com a vida pobre, são os mínimos detalhes que devem ser atentados e que dão sustento à cenas longas e de difícil interpretação.

“O Gebo e a Sombra” é um filme sobre a ética a ser seguida em situações difíceis. Ao longo de toda a projeção, ambições são confessadas e argumentos são lançados, banhados de um bom café. Sem tomar partido, Manoel de Oliveira nos incita a discutir nossa própria moral em tempos de crise em uma obra-prima que ultrapassa os limites da linguagem de qualquer arte ou mídia.

Mateus Almeida
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