Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Ender’s Game – O Jogo do Exterminador (2013): guerra e nulificação da inocência infantil

Mesmo longe de ser um filme sem falhas, o longa ao menos tem a coragem de fazer algumas perguntas difíceis, mesmo que dourando um pouco a pílula aqui e ali.

jogodoexterminador_9Uma sociedade traumatizada por uma guerra, propagandista, com a maioria dos recursos do Estado sendo dirigidos para fins militares e que incentiva as famílias a entregarem suas crianças para serem treinadas como engrenagens de combate, como buchas de canhão dispensáveis ou líderes estrategistas. Este é o mundo distópico de “Ender’s Game – O Jogo do Exterminador”, longa que adapta o livro homônimo de Orson Scott Card para o cinema.

Escrito e dirigido por Gavin Hood, a escolha dos produtores pelo cineasta sul-africano faz sentido. Mesmo sendo mais lembrado por ter comandado o medíocre “X-Men Origens – Wolverine”, Hood ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro por “Infância Roubada”, fita que trata justamente sobre um jovem que teve a inocência típica da idade usurpada pelas circunstâncias sociais do mundo em que vive.

Aqui, somos apresentados a Ender Wiggin (Asa Butterfield), terceiro e último filho de um casal que tenta emplacar um de seus rebentos em um concorrido programa militar. O mais velho, Peter (Jimmy Pinchack), foi rejeitado por seu temperamento excessivamente violento. A filha do meio, Valentine (Abigail Breslin), foi expulsa por ser demasiadamente compassiva.

Por isso, Ender tenta reprimir ao máximo seus sentimentos, tornando-se alguém que aparenta, superficialmente, ser apático. No entanto, é dotado de uma mente tática inigualável, movida por sua empatia quanto ao adversário, o que o coloca na alça de mira do Coronel Graff (Harrison Ford), que enxerga no garoto o instrumento perfeito para finalmente devastar os Formics, raça alienígena insectóide que quase dizimou a raça humana em um ataque anos antes.

O pano de fundo do roteiro é essencial para compreender as atitudes de Ender. Cada informação sobre aquele mundo nos diz mais sobre o protagonista que, engessado emocionalmente por seu ambiente, quase não se permite exprimir suas próprias emoções,  fazendo apenas em momentos de choque e descontrole, com Asa Butterfield somente se soltando nesses momentos, o que torna o seu trabalho de atuação limitado, embora isso seja adequado ao personagem.

Seus únicos e raros momentos de alegria genuína são ao lado da irmã e da amiga Petra (Hailee Steinfeld). Tanto Steinfeld quanto Abigail Breslin são deveras subutilizadas, mesmo com uma menção a um possível início de romance entre o protagonista e Petra. Mas, para benefício do filme, esta jamais se concretiza. Digo isso pois a produção, em seu cerne, não é sobre batalhas ou treinamentos, mas sim sobre como aquele mundo destruiu essa criança sensível e inteligente, a usando sem se importar com ela e qualquer momento de maior felicidade destruiria a película.

A voz da compaixão, quase nulificada, é encarnada pela Major Anderson, vivida por Viola Davies. Mas ela é sempre sobrepujada – e depois descartada – em prol do “bem militar” representado por Graff. Harrison Ford empresta sua presença sempre forte e imponente ao experiente militar, representante maior de uma cultura que, naquele mundo, dessensibilizou toda uma geração ao impacto da violência por meio de uma violenta propaganda militarista e da transformação da guerra em jogos para atrair crianças às forças armada – tema extremamente atual hoje, com a evolução paralela dos games e dos drones de combate.

O personagem de Ben Kingsley representa, de modo um tanto quanto excessivamente teatral, justamente a passagem de tocha entre o combatente clássico, aquele que arriscava a vida em campo, para uma nova espécie de militar, que comanda suas forças automatizadas do conforto de uma sala de guerra climatizada.

Como pode haver o entendimento para com o opositor à distância? Ou mesmo como um soldado sofreria os impactos dos horrores da guerra se suas ações não diferem muito do apertar de botões em um joystick ao jogar um game? Contrapondo essas interrogações, há todo um espetáculo hollywoodiano de simulações de batalhas em gravidade zero e astronaves de combate, em efeitos competentes, embora nem sempre satisfatórios embalados por uma trilha um tanto quanto derivativa.

Os Formics, tão diferentes e incapazes de se comunicar, podem ser tão alienígenas aos olhos dos humanos quanto pessoas de culturas diferentes o são para os estadunidenses médios (ou pessoas de classes sociais inferiores o são para os mais abastados, em um contexto micro). Até onde podemos ir pela a segurança de nosso grupo social e ainda nos considerar dotados de humanidade?

Infelizmente, essa pergunta, feita no último terço da projeção, acaba tendo seu peso diluído por um epílogo sentimentalista, que deixa um final em aberto, esperançoso e artificial, apropriado para continuações. Esse escorregão, no entanto, não invalida os questionamentos feitos até ali. E é a partir deles que os bons exemplares de ficção científica são feitos, e não de efeitos especiais.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

Compartilhe