Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 29 de outubro de 2013

Bastardos (2012): o doloroso e brutal retrato de uma família doentia

A diretora francesa Claire Denis reúne um elenco estelar para contar uma terrível tragédia sobre sexo, perversões e dominação.

bastardos_1A maioria dos personagens deste “Bastardos” são seres humanos absolutamente desprezíveis, capazes de atos terríveis para satisfazerem seus prazeres. Isso é algo que fica claro desde o início da fita e é escancarado de maneira sádica pela diretora e coroteirista Claire Denis nos últimos instantes da trama. Neste mundo criado pela cineasta parisiense e seu colaborador habitual, o escritor Jean-Pol Fargeau, a desumanização é uma consequência óbvia da busca por prazeres mundanos, evidenciando a “raiva” que Denis diz tê-la inspirado durante a feitura do longa-metragem.

A trama acompanha Marco Silvestri (Vincent Lindon), capitão de uma embarcação que é chamado às pressas de volta para Paris após o suicídio de seu cunhado e um aparente colapso nervoso de sua sobrinha, Justine (Lola Créton). Os negócios de sua família, que eram gerenciados pelo cunhado, estão indo à bancarrota, o que deixaria sua irmã, Sandra (Julie Batallie), na miséria.

Ela culpa o magnata Edouard Laporte (Michel Subur) por todas essas tragédias. Marco, então, se muda para o prédio onde vive a amante de Laporte, Raphaëlle (Chiara Mastroianni), e o filho deles. Quaisquer que fossem as intenções de Marco, elas se transformam quando mais segredos sobre sua família são revelados.

Apesar de ter apenas 83 minutos de duração, navegar por “Bastardos” é uma experiência dura, o que faz com que o filme pareça bem mais longo do que o é. Sua estrutura fragmentada, com bem colocadas idas e vindas temporais, tornam a narrativa ainda mais complexa e também nos deixam tão desnorteados quanto Marco com as informações descobertas conforme a história se desenrola. O status de forasteiro do protagonista, que há muito se afastou de sua família, é ideal para o roteiro, colocando público e “herói” (se é que este termo pode ser usado aqui) em pé de igualdade.

Vincent Lindon confere um ar experiente e um tanto cansado à Marco. Há muita culpa por trás de suas rugas e ressentimentos fáceis de serem vistos em seus olhos e um vazio em seu âmago, representado pelo seu apartamento, praticamente vazio. Certamente o personagem mais abnegado da trama, capaz de se desfazer de tudo que torna sua existência “segura”, ele, aos poucos, se pergunta se esses sacrifícios valem a pena.

Seu relacionamento com Raphaëlle praticamente se restringe ao plano físico, mas ele enxerga algo nela que desperta certo sentimento de proteção, talvez por ter sido incapaz de ter protegido Sandra e Justine do “monstro”. A química entre Lindon e Chiara Mastroianni é ótima, repleta de tensão. Até porque a bela Raphaëlle estava contentada (mas não plenamente feliz) com sua rotina, até a chegada de Marco, que ameaça, para o bem ou para o mal, a tranquilidade de sua existência quase que em cativeiro.

A Sandra de Julie Bataille deflete sua culpa e omissão quanto ao que ocorreu com sua família para o ausente Marco, que é um homem condicionado a aceitar essa responsabilidade. É impossível realmente saber quem era Justine, pois Lola Créton não a interpreta, dando vida apenas a uma casca do que algum dia pode ter sido a jovem, que ali já fora degradada até o osso por maus-tratos sexuais, psicológicos e químicos, perpetrados por demônios em formas humanas. Aliás, louve-se a sutil interpretação do veterano Michel Subur como Laporte, bem como o modo quase que deformado com o qual ele é fotografado.

Interessante notar que tanto Raphaëlle quanto Sandra e Justine são mulheres cujas trajetórias e tragédias estão ligadas inexoravelmente aos desejos dos homens em suas vidas, com seus destinos sendo manipulados pelas perversões masculinas. Todas essas figuras se encontram mergulhadas em sombras perpétuas, que só são aliviadas com a presença de infantes puros em cena (o filho de Raphaëlle e a filha de Marco), quase que como o filme dissesse que crianças não são permitidas naquele mundo.

O que mais incomoda e dói em “Bastardos” não é a forma cruel com que Claire Denis enxerga o mundo, mas sim que ela está sim, muito próxima da realidade doentia vivenciada por muitas famílias, independente de classe social.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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