Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 04 de fevereiro de 2013

Os Miseráveis (2012): um musical bem acima do tom ideal

Tom Hooper exagera além do recomendável em seus números musicais, valoriza a forma ao conteúdo e faz de seu filme uma grande e cansativa cantoria de personagens mal construídos.

Os MiseráveisNão espere delicadezas e minúcias em musicais. Exagerar é quase uma palavra de ordem neste perigoso gênero cinematográfico. Saber a medida certa, porém, é para poucos. E errá-la quase sempre significa tornar o projeto intragável. Baz Luhrmann e, em certos pontos, Rob Marshall tiveram a sorte e, principalmente, a coragem de encontrá-la, dando origem aos dois grandes musicais do século, “Moulin Rouge” e “Chicago”. Na tentativa de fazer algo ainda maior e histórico, o diretor Tom Hooper, no entanto, exagera além do permitido na dose. São tantos números e tantas histórias a serem contadas que é impossível identificar-se ou minimamente importar-se com qualquer personagem deste “Os Miseráveis”, com exceção do talento vocal e dramático de alguns de seus intérpretes.

A trama se passa inicialmente em 1815, décadas após o fim da Revolução Francesa. Em uma prisão de Toulon, Jean Valjean (Hugh Jackman) cumpre seu 19º ano de pena em decorrência de ter roubado um mero pedaço de pão. Sua liberdade condicional, porém, logo é concedida pelo maléfico inspetor e policial Javert (Russell Crowe). Valjean, no entanto, foge e a desrepeita. Oito anos mais tarde, o agora bem sucedido empresário e prefeito de uma pequena cidade volta a encontrar-se com seu antigo arquirrival, tendo de fugir e esconder-se mais uma vez. Mas ele não vai sozinho. Comovido com a história de vida de Fantine (Anne Hathaway), que acabara de ser demitida de sua fábrica, ele decide procurar e criar a agora orfã filha da moça, a pequena Cosette (Isabelle Allen), dando continuidade a um conto de amor envolto por muitas lutas e sofrimentos.

Primeira adaptação do musical homônimo composto por Claude-Michel Schonberg e Alain Boublil em 1980, que por sua vez é uma das dezenas de adaptações teatrais e cinematográficas da obra escrita pelo francês Victor Hugo em 1862, “Os Miseráveis” está muito mais para um grande espetáculo do que para um filme. Nele, a forma importa mais do que o conteúdo. O cenário, a pomposidade dele e de alguns figurinos, a maquiagem e, principalmente, a dramaticidade das interpretações ganham demasiado valor enquanto a história vira uma mera coadjuvante. E são tantos números musicais de grande escala que torna-se difícil dar a devida importância para cada um deles.

Em suma, falta silêncio que pontue momentos dessa narrativa que, por isso e pela opção de Hooper e do roteirista William Nicholson de fazê-la quase 100% cantada, torna-se atropelada e cansativa. Logo, quando acabamos de ver uma intensa sequência musical que pode impressionar visual e vocalmente, adentramos em outro número tão ou mais intenso que nos faz esquecer o anterior e que também  pouco contribui para o desenvolvimento da trama, mais especificamente das relações entre os personagens.  E essa situação se repete por diversas vezes durante as duas horas e meia de duração do longa.

Essa overdose musical seria mais suportável caso Tom Hooper não exagerasse também em seus planos fechados e close-ups, bem como em suas tomadas tortas e que isolam seus personagens do lado direito da tela, repetindo o padrão de direção medíocre de “O Discurso do Rei”, que funciona com ainda menos eficiência aqui. A proximidade da câmera dos atores é tanta que em alguns momentos a impressão é de que ela pode tocar seus rostos. Mas a maioria deles corresponde com a confiança depositada pelo diretor em seus trabalhos. Caso contrário, o filme seria um total fiasco.

O destaque vai exatamente para os indicados ao Oscar: Hugh Jackman e Anne Hathaway. No papel de sua carreira, Jackman impressiona já em sua segunda sequência musical, demonstrando toda a dedicação e entrega ao projeto por meio de veias que saltam de sua testa e de um olhar devastador. “Os Miseráveis” não sobreviveria sem o seu talento e carisma. À Hathaway cabe protagonizar as melhores cenas do filme. A tragidicidade de Fantine, a jovem mãe trabalhadora forçada a virar prostituta e vender os dentes e o cabelo, é representada pela sua impressionante performance de “I Dreamed a Dream”.

Amanda Seyfried e Eddie Redmayne, como a crescida Cosette e seu interesse amoroso Marius, respectivamente, também não fazem feio. No entanto, são superados por Samantha Barks, como a sofrida Éponine, a moça que nutre uma paixão não correspondida por Marius. Sua interpretação de “On My Own” é uma das poucas boas sequências da segunda parte da trama. Seus pais, os salafrários Thénardier de Sasha Baron Cohen e Helena Bonham Carter, trazem um satisfatório alívio cômico à narrativa. E cabe a Russel Crowe a performance abaixo da média do elenco. Tão inexpressivo quanto sua voz, o premiado ator não poderia estar mais decepcionante.

Seu desempenho, aliás, contribiu para um inconvicente antagonismo entre Valjean e Javert, relação que deveria ser a razão de existência de toda a história. O roteiro de Nicholson, porém, também faz sua parte negativa para fazer dessa rivalidade um mero motivo para eles cantarem suas frustações e desejos em plena Paris do século XIX, mesmo que não acreditemos em nada do que eles dizem. Faltam também momentos que façam o público acreditar no remorso de Valjean com Fantine, no amor de Valjean por Cosette e na paixão desta por Marius. O filme falha em transmitir boa parte de suas relações pessoais. Parece desnecessariamente preocupado com seus irrelevantes coadjuvantes e em ser fiel ao musical que adapta.

No entanto, vale dizer que o longa possui versões louváveis dos clássicos que se tornaram as canções escritas por Schonberg e Boublil, fazendo as melhores delas reverberarem por boa parte da trama, como as duas já citadas e a ótima “Can You Hear The People Sing?”. Pena que a força da música se dissipe com a falta de preocupação social do longa, demasiadamente comprometido em exibir o próximo número musical, fazendo o público clamar por um tempo para respirar, talvez uma divisão em atos, como no teatro. E, como em um espetáculo, você sairá dele cantarolando algumas das músicas, mas pouco se importará com que os personagens deste show acabaram de viver.

Darlano Didimo
@rapadura

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