Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 20 de janeiro de 2013

Django Livre (2012): após os nazistas, os escravocratas americanos são o novo alvo de Tarantino

No segundo ato de seu arco enfocando o revanchismo histórico, o cineasta Quentin Tarantino brinca com a polêmica ao misturar, sem papas na língua, escravidão, faroeste e blaxploitation.

270617O estilo das histórias contadas por Quentin Tarantino e o modo como ele conduz suas tramas tornaram o cineasta praticamente um gênero cinematográfico per si. Seus longas são carregados de um violento humor negro, possuem um pé (ou dois) nos pulps, investem em diálogos rápidos e inteligentes e fazem referências diretas e indiretas à cultura pop e filmes cults, geralmente os chamados “exploitations”, a exploração cinematográfica de um nicho cultural de forma exagerada ou até absurda.

Embora Tarantino já tenha se utilizado do blaxploitation antes (vide “Jackie Brown” e boa parte de “Pulp Fiction – Tempo de Violência”), neste “Django Livre” o diretor resolveu ousar mais, mixando esse subgênero com os westerns spaghetti que ele tanto ama, enfiando o dedo na ferida incômoda aberta da escravidão estadunidense e situando sua história no sul dos EUA a poucos meses da Guerra Civil local, colocando os escravocratas como a grande “figura de autoridade” a ser combatida pelos afro-americanos através da violência.

Aqui, Tarantino brinca com ícones desses dois filões cinematográficos, o Django eternizado por Franco Nero nos faroestes sessentistas e o Bad Mother***er original, John Shaft, trazendo-os para o seu universo particular, lançando ainda mão de um pouco de mitologia nórdica, só porque ele pode.

Vivido por Jamie Foxx, Django é um escravo recrutado (e libertado) pelo caçador de recompensas alemão Dr. King Schultz (Christoph Waltz) para identificar três foras-da-lei que estão em sua alça de mira. Concluído o trabalho, Django tomou gosto pelo ofício, passando a atuar como parceiro e aprendiz de Schultz, até que os dois passam a uma missão mais pessoal: resgatar a esposa do ex-escravo, Broomhilda (Kerry Washington), das mãos do sádico fazendeiro Calvin J. Candie (Leonardo DiCaprio).

Os diálogos de Tarantino continuam uma carregada metralhadora em plena forma, especialmente quando empunhados por atores do calibre de Waltz, DiCaprio e Jackson (os grandes falastrões do filme, sem dúvida). A questão é que Django é um personagem essencialmente quieto, até por ser da natureza do protagonista de um Western fazer mais do que falar, tornando o trabalho de construção do personagem mais físico para Jamie Foxx e mais visual para Tarantino.

Assim, quando Django surge em uma roupa azul extravagante em determinado momento da projeção, é enquadrado pela câmera quase como um super-herói em seu uniforme. Afinal, um afro-americano daqueles tempos no sul dos EUA, à cavalo e armado seria tão chocante quanto um homem voador de collant azul nos nossos céus hoje. Em momentos de selvageria, o foco é na brutalidade (sempre justificada) das ações do personagem e na impetuosidade deste. É um protagonista atípico na filmografia de Tarantino, afinal até Beatrix Kiddo parava um pouco com sua vendetta para quebrar a quarta parede e conversar com o público.

Essa atitude mais direta de Django pode ser encarada até como “antipática” por alguns cinéfilos, mas o fato é que Foxx e Tarantino foram fiéis ao que esta figura tem de ser, até por se tratar de um guerreiro em uma luta para resgatar sua princesa das garras de um dragão (sendo este, aliás, o único papel desempenhado por Broomhilda na história, o de donzela em perigo).

É compreensível, portanto, que as atenções do público se voltem para o parceiro de Django, o Dr. King Schultz, com os dois fazendo uma dupla mais equilibrada. A magnética atuação de Christoph Waltz e a química deste com Foxx tornam o personagem irresistível, especialmente por se tratar de um homem altamente culto que se vê em meio a uma multidão de ignorantes, com sua frustração ao tentar travar diálogos mais complexos sendo divertidíssima.

No outro extremo desse espectro, temos o deliciosamente repulsivo Calvin Candie, o primeiro vilão da já longa carreira de Leonardo DiCaprio. Candie é o oposto exato de Schultz, um abastado e pouco iluminado escravocrata que gosta de se exibir como um entendido cultural, embora não passe de um fanfarrão sádico. DiCaprio provavelmente buscou alguma inspiração no Calígula de Malcom McDowell, embora as perversões Calvin não sejam tão “complexas” quanto as do infame imperador romano.

Já o Stephen de Samuel L. Jackson se revela como a verdadeira mente por trás de Calvin, tendo uma relação quase que simbiótica com seu “patrão”. A despeito de sua fragilidade física, ele se mostra mentalmente afiadíssimo, puxando sempre uma ou duas cordas de Calvin quando necessário, com a interpretação de Jackson remetendo quase a uma versão masculina e maquiavélica da Mammy, do clássico “…E o Vento Levou”.

O elenco ainda conta com ótimas participações curtas de outros atores. Don Johnson está especialmente divertido como o vilanesco Big Daddy, Jonah Hill surge como um membro de uma organização racista, James Remar (da série “Dexter”) tem dois papeis no longa (ambos de vilões) e Tarantino, além de se escalar para uma explosiva intervenção, ainda chama para pontas rápidas na produção alguns de seus atores-fetiches, como Michael Parks e Zoë Bell. Sem contar, é claro, uma rápida benção de Franco Nero ao projeto.

A boa montagem ficou por conta de Fred Raskin, aprendiz da saudosa Sally Menke, que impôs um bom ritmo ao longa, a despeito de uma “barriga” no começo do terceiro ato, em uma sequência que poderia ter sido omitida e que só serviu para postergar a conclusão da trama, mas esse problema se deve mais ao roteiro que ao montador.

O cineasta retoma sua parceria com o cinematógrafo Robert Richardson, que o ajuda a retratar as vastas paisagens do sul em um colorido vivo pouco comum aos trabalhos do diretor, resultando em alguns dos mais belos planos da carreira deste, embora a quantidade de cenas em câmera lenta durante a projeção surpreenda. A fita ainda marcou a primeira (e infelizmente última) colaboração de Tarantino com o veteraníssimo designer de produção J. Michael Riva (falecido em junho de 2012), que brinda o espectador com uma competente recriação do sul estadunidense de meados do século XIX.

A trilha sonora, como não poderia deixar de ser em um filme de Tarantino (o segundo melhor gosto musical da sétima arte, perdendo apenas para Cameron Crowe), é ótima, indo desde Ennio Morricone e temas clássicos dos western spaghetti até a RZA, em remixes tão bem elaborados quanto a mistura temática da película.

“Django Livre” pode até não ser o melhor trabalho de Tarantino, mas continua muito bem o arco de revanchismo histórico iniciado por ele em “Bastardos Inglórios”, entregando ótimas atuações (especialmente de Waltz e DiCaprio), cenas de ação exageradas e toscamente divertidas e muito humor negro. Se Spike Lee não quer assistir, a perda é só dele.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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