Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

A Negociação (2012): longa revela os bastidores do sistema

Thriller financeiro se ancora em roteiro inteligente e em ótimo elenco.

A crise econômica mundial tem rendido bons filmes à Hollywood. Depois do insano “Cosmópolis” de David Cronenberg, que trabalha a degradação física e mental da sociedade contemporânea e particularmente de seu protagonista, chega “A Negociação” (Arbitrage), que embora mantenha uma narrativa mais convencional, é igualmente pessimista em relação ao caráter dos indivíduos que lidam diretamente com a falência socioeconômica.

O filme acompanha o empresário Robert Miller (Richard Gere) na tentativa de fechar contrato para vender sua empresa, usando como justificativa o desejo de passar mais tempo com a família – postura típica dos bem-sucedidos de meia-idade que, já satisfeitos com o que alcançaram, decidem perceber que trabalharam demais e viveram de menos. Entretanto, um acidente de carro que vitima sua amante Julie Côte (Laetitia Casta) enquanto Miller dirigia pode ser o fim de sua família e de sua imagem pública, obrigando-o a esconder o evento e efetivar a assinatura do contrato de venda o mais rápido possível.

O diretor e roteirista Nicholas Jareki, que estreia no comando de um longa de ficção, constrói de forma sucinta e paciente o personagem de Gere durante o primeiro ato. Apresentando-o como um empresário bem sucedido e um chefe de família dedicado, quebra esta imagem de maneira fluida – mas inesperada – com a introdução de sua amante e a revelação de uma transação fraudulenta – uma vez que Miller detém um empréstimo de milhões na sua conta que o possibilita passar na auditoria e vender a empresa sem problemas judiciais.

A partir daí, o cerco começa a se fechar para o empresário, que se vê pressionado de diversos lados e formas diferentes: o remorso por ter causado a morte de sua amante, a investigação do detetive Michael Bryer (Tim Roth) sobre o acidente, o risco de seu protegido Jimmy Grant (Nate Paker) ser condenado por obstrução – pois sem saber, serviu de motorista na fuga de Miller do local do acidente –, a assinatura do contrato que nunca se efetiva e a sua filha e funcionária da empresa Brooke (Brit Marling) que desconfia da fraude. É uma teia complexa de relações que são muito bem definidas e trabalhadas pelo roteiro de Jareki, que consegue dar a devida importância a cada uma sem perder o ritmo da trama.

O único laço ao qual não é dado muita atenção é a relação entre Miller e sua esposa Ellen (Susan Sarandon), mas isto certamente é proposital. Embora o casal tenha boas cenas juntos, elas geralmente se limitam a conversas cotidianas, como se o diretor quisesse passar a ideia de um matrimônio estável e de uma esposa dedicada apesar do marido ausente e parcialmente ingênua quanto ao sufoco pelo qual ele passa. Mas a personagem de Sarandon, antes tarde do que nunca, diz a que veio, dando uma brusca intensidade à relação conjugal que só funciona devido à aparente superficialidade que Jakeri apresenta entre os dois até então.

Gere carrega todo este peso em sua atuação, variando entre a tranquilidade disfarçada e a beira da loucura. O ator dá naturalidade aos trejeitos e às falas do personagem, mesmo quando precisa ser estrategicamente mais incisivo nas cenas de maior carga dramática ou tensão. Outro destaque é Tim Roth, que faz de um personagem genérico um dos mais memoráveis do longa. Sua linguagem corporal desleixada dá personalidade ao detetive, que se senta torto, anda feito malandro e sorri sarcasticamente.

A fotografia de Yorick Le Saux tem uma textura suave que valoriza bastante os cenários de Michael Ahem e as cores na decoração de Carrie Stewart, ambos maravilhosamente compostos. Os enquadramentos buscam uma formalidade estética, fugindo um pouco do caráter contemporâneo de thrillers. É justamente este trabalho com a imagem que passa a sensação de que, apesar de toda a sujeira que se desenvolve nos bastidores do poder, a população continua alienada e o status quo se mantém. Os planos formais, a textura suave e as cores nítidas representam o modo como escolhemos ou nos é permitido olhar – sempre com tranquilidade e submissão – para este lugar obscuro do mercado onde é ditada a ordem socioeconômica mundial.

Cinema com Rapadura Team
@rapadura

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