Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 25 de setembro de 2012

Polissia (2011): retrato da violência infantil é tema de longa francês

Vencedor do Prêmio do Júri em Cannes e baseado em fatos reais, filme trata do tema com maestria

Em 2011, o Brasil ocupou o vergonhoso terceiro lugar no número de casos de pedofilia pela internet, ficando atrás de Estados Unidos e Alemanha, respectivamente no primeiro e segundo lugares. Isso sem contar os casos de abusos sexuais praticados contra crianças menores de 12 anos. Esta faixa etária, segundo dados da Associação e a Polícia Postal italiana, diante de investigações no mundo, resultou no assombroso número de 69.850 vítimas de abusos somente em 2010.

Indicado à Palma de Ouro no Festival de Cannes e vencedor do Prêmio do Júri em 2011, estreia no Brasil “Polissia”, dirigido pela cineasta e atriz Maïwenn, um filme impactante e contundente que brilhou no César 2012, levando oito estatuetas das 14 as quais estava indicado, incluindo Filme, Diretor e Roteiro Original (escrito a quatro mãos pela própria Maïwenn e Emmanuelle Bercot, diretora/roteirista/atriz, ambas também no elenco).

Inspirado em fatos reais da Brigada de Proteção Infantil da polícia de Paris, acompanhamos os personagens que lidam, dia a dia, com a violência infantil em suas mais diversas faces, como violência sexual, agressão, abandono e exploração, além de roubos e tráfico de drogas. A rotina do grupo muda com a chegada da introspectiva fotógrafa Melissa (a diretora Maïwenn), que acaba por se aproximar do temperamental Fred (Joey Starr), um homem incapaz de não se envolver nos casos em que trabalha.

Em um emaranhado de personagens, “Polissia” une as histórias de todos eles, criando conflitos particulares, seja de seus personagens com a própria família, seja entre eles próprios. Temos a recém divorciada Nadine (Karin Viard, premiada com o César), que luta entre a traição do marido e a continuação de um casamento pelas duas filhas. Linha dura e com uma relação complicada com o marido, está Iris (Marina Foïs, outra premiada com o “Oscar francês”), que enxerga a vida de forma negativa e repleta de conflitos internos.

Enquanto o chefe do pelotão Baloo (Frédéric Pierrot) se alterna entre amenizar os ânimos do grupo e lidar com o superior  Beauchard (Wladimir Yordanoff), observa a tensão do trabalho afetar sua vida pessoal. Acompanhamos, ainda, o sensível Mathieu (Nicolas Duvauchelle), que se descobre apaixonado pela colega Chrys (Karole Rocher), casada e à espera de um filho.

Assim, neste vulcão de emoções e sentimentos, nos embrenhamos na rotina do grupo lidando com uma mãe drogada que sequestra o próprio filho, pais/avôs/tios/mães/professores/desconhecidos que abusam sexualmente das crianças e até casos mais complexos, como uma mãe sem-teto que sofre ao abdicar do próprio filho para privá-lo do cruel destino que já lhe reserva, e da mulher (Sandrine Kiberlain) que, por uma confissão da filha, começa a desconfiar dos abusos praticados pelo marido (Louis-Do de Lencquesaing), um homem influente e que pode estar imune a qualquer punição judicial.

O título “Polissia” vem do modo infantil de escrever a palavra “polícia”, em uma identificação com o lúdico infantil quebrado diante da realidade que enfrentam (evidente já em seu prólogo e na irônica abertura). Muitas destas crianças, inclusive, não entendem o que se passa, pois pensam tratar-se de uma forma de carinho das pessoas que as rodeiam e não que são ameaçadas pelo mal vindo, na maior parte das vezes, de dentro da própria casa. Afinal, segundo psicólogos especialistas em agressão infantil, cerca de 80% dos casos de abuso sexual de crianças acontecem na intimidade do lar: pais, padrastos, avôs e tios são os principais agressores.

Em depoimentos que transitam entre as crueldades sofridas e a narração inocente dos pequenos, o filme não se censura diante dos casos, em um roteiro que toca direto na ferida nos mais diversos pontos. E assim, nos oferece cenas marcantes, como a polvorosa discussão em árabe entre um muçulmano e a policial Nora (Naidra Ayadi, mais uma estatueta do César) que, empunhando o Corão, esbraveja contra o homem que quer casar a filha à força com um primo, ou quando uma adolescente aborta o fruto de um estupro (lembrando cenas do premiado longa belga-romeno “Quatro Meses, Três Semanas e Dois Dias”).

O roteiro de diálogos rápidos e a direção dinâmica que privilegia a câmera na mão dão ainda mais estilo documental a “Polissia” (mais um César de Edição) que, apesar de não focar nos vereditos dos casos, expõe o modo de enxergar a polícia diante da sociedade e da política, em atuações de um elenco impecavelmente competente, cujo psicológico de todos é muito bem trabalhado, com nervos à flor da pele prestes a explodir a cada cena, ou seja, estão longe de se considerarem heróis.

O filme consegue, ainda, levantar a questão “até que momento é verdade o que dizem as crianças?”. Com uma juventude em que a vida sexual começa, muitas vezes, aos 12, 14 anos, se instala uma linha tênue entre o que é verdade e o que a imaginação das crianças menores é capaz de forjar, criando situações que nem elas mesmas sabem se são reais. Isso fica ainda mais evidente quando um pai nega, às lágrimas, ter abusado da própria filha durante o banho e o policial Fred, durante a mesma situação com a filha, se recusa a banhá-la, se precavendo de uma futura acusação.

Esta intertextualidade permeia até os próprios policiais que, também pais, tornam-se crianças quando vão a uma discoteca comemorar o sucesso de um caso. Dançam como se deixassem a vida adulta entre as paredes da delegacia e se permitem somente aquilo que as crianças querem: evitar o mundo adulto enquanto podem. E neste retrato soco-no-estômago, raros momentos de delicadeza ganham espaço em uma representação forte, sincera e atual da violência mundial contra menores.

“Polissia” tenta com todas as forças abordar o máximo que o tema permite sem tornar o filme cansativo. Assim, consegue, ainda, pincelar a questão da pedofilia como um distúrbio psicológico incontrolável (como retratado no ótimo “O Lenhador”, estrelado por Kevin Bacon, sobre um pedófilo em conflito consigo mesmo) e a chamada Síndrome de Estocolmo, quando a vítima se aproxima do seu algoz.

É louvável o trabalho de Maïwenn, produção e elenco, que criam uma obra corajosa, sincera, emocionante e imprescindível, cujo epílogo é capaz de dar um nó na cabeça do espectador e dar margem a prováveis – e acaloradas – discussões.

Léo Freitas
@LeoGFreitas

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