Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

A Fonte das Mulheres: humor e teor político na nova obra de Mihaileanu

Cineasta romeno Radu Mihaileanu discute manifesto feminista de um povo movido pela tradição.

A guerra dos sexos não é um tema novo. Mas assim como qualquer outra premissa recorrente, o que diferencia o caráter de uma obra é a forma como ela é contada. Talvez seja até um tema que tenha pouca força atualmente, por sabermos que as mulheres já não são mais seres sensíveis que ficam dentro de casa cuidando da família. Hoje elas são modernas, defendem seus próprios pontos de vista e ocupam espaços importantes tanto quanto os homens. Mas não há como negar que os costumes e tradições de alguns povos não seguem essa linha. É essa peculiaridade o foco do novo filme do cineasta romeno Radu Mihaileanu.

A trama é inspirada em um recente fato registrado na Turquia, quando mulheres muçulmanas já não enxergam na cotidiano o modo correto de viver. Elas fazem o trabalho pesado, em busca de água para o vilarejo onde moram, enquanto os homens passam o dia bebendo chá e jogando cartas, além de serem meros reprodutores. Em tempo, elas são valorizadas pelo dom da maternidade, mas isso não impede que elas continuem com o trabalho braçal, que causa machucados e até mesmo abortos durante o percurso de retirada da água. Quando Leila, interpretada pela estonteante Leila Bekhti, sugere uma greve de amor (leia-se sexo) para que os homens percebam que o valor das companheiras não está apenas nos serviços domésticos, os moradores precisam lidar com o que supostamente diz o Alcorão e essa nova realidade feminina.

Radu Mihaileanu, que já realizou obras como “Trem da Vida” e o simpático “O Concerto”, mais uma vez empresta seu talento em uma obra que reflete, por meio de olhos modernos, a inclusão de uma sociedade feminina para o povo muçulmano. Em determinado momento, Leila faz uma leitura coerente, porém estranha para aquelas pessoas que mal sabem ler (função dos homens), do Alcorão, dizendo que lá está escrito que as mulheres têm direitos iguais e que estão destinadas ao paraíso, já que são os seres divinos que procriam.

Além disso, Mihaileanu traz novamente o toque cômico indispensável para a trama, principalmente quando se expressa por meio das canções de vitalidade e denúncia do que aquelas mulheres vivem em uma sociedade, digamos, retrógrada. A trama aparentemente beira o piegas ou mesmo à inocência, na construção de uma sociedade que ao invés de reclamar das autoridades políticas, até então despreocupadas com seu povo, preferem resolver a situação com as próprias mãos.

Essa ingenuidade limita o contexto político da trama, mas em nada atrapalha a valorização dos costumes em detrimento de pessoas que podem muito bem escolher seus caminhos. É tanto que algumas mulheres, ao insinuarem uma greve de sexo, resistem à ideia, porque elas também não querem ficar sem se relacionar com seus respectivos maridos. Enquanto elas têm voz para escolher não submeter à abstinência, as que optam por apoiar o manifesto precisam enfrentar os homens machistas e acomodados.

Ainda que mostre o tradicionalismo de boa parte dos homens da vila, Mihaileanu confere ao namorado de Leila, Sami (Saleh Bakri), certa tolerância ao manifesto, levando mais dimensões para aquele universo e apostando em mudanças que podem vir ou não com o tempo. Colaborando na construção desse universo em recomposição, Mihaileanu conta com um elenco afiado, abrilhantado também pelo bom humor da atriz Biyouna na pele da experiente Velho Fuzil, responsável por dar a Leila uma espécie de consultoria daquela estrutura familiar arcaica pré-estabelecida e também pelos diálogos cômicos do roteiro.

A fotografia de Glynn Speeckaert, experiente no cargo, auxilia o departamento de arte na construção daquele espaço tão conservador, mas com um toque moderno quase aparentando ser uma fábula. Na direção, Mihaileanu conta a sua história de uma forma descontraída e vai facilmente do drama à comédia. Como musical, é bastante curioso o contraponto que o cineasta cria em diversos momentos do longa. Em uma determinada cena, as mulheres cantam uma música de protesto para um público estrangeiros que estão ali para admirar a cultura, mas não entendem o idioma, e neste momento vemos como o cineasta brinca com o constrangimento dos maridos que nada podem fazer.

Longe de ser utópico, “A Fonte das Mulheres” atualiza um tema desgastado pelas películas sexistas por meio do bom humor e do questionamento de suas tradições. Afinal, tudo é uma questão de ponto de vista. Vale ressaltar que em momento algum o longa desrespeita tais costumes, apenas os questiona. E mais uma vez Radu Mihaileanu acerta em uma trama despretensiosa e mantém a qualidade da sua filmografia.

Esse filme foi visto durante o 8º Amazonas Film Festival, em novembro de 2011.
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Diego Benevides é editor chefe, crítico e colunista do CCR. Jornalista graduado pela Universidade de Fortaleza (Unifor), é especialista em Assessoria de Comunicação, pesquisador em Audiovisual e arte educador na linha de Artes Visuais e Cinema. Desde 2006 integra a equipe do portal, onde aprendeu a gostar de tudo um pouco. A desgostar também.

Diego Benevides
@DiegoBenevides

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