Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 14 de janeiro de 2012

Tomboy: sobre orientação e opções inerentes à natureza do ser humano

Depois de “Lírios D’Água”, a francesa Céline Sciamma volta seus olhos delicados para o universo infantil em filme discreto, mas cheio de atitude.

Experimente assistir a “Tomboy” de olhos fechados, sem ler a sinopse e muito menos essa crítica. Vale a pena, acredite! Teste o seu preconceito e o seu conceito do que é ser feminino e masculino. Adentre a história escrita e dirigida por Céline Sciamma sem expectativas e se envolva na nova rotina da criança que protagoniza esta produção. A naturalidade do trabalho de Sciamma, que dispensa completamente a trilha sonora, já proporciona suficientes atrativos com o que se envolver, característica que fica mais explícita nas ótimas interpretações de todo o elenco. Pois é exatamente com essa mesma naturalidade, com apenas uma tomada, que o longa revela suas verdadeiras intenções.

Michael, na verdade, não é Michael, e sim Laura (Zoé Héran), uma menina moleque (tradução literal do título do filme) que adora vestir roupas tradicionalmente feitas para garotos e que não curte se maquiar, mas sim jogar futebol. Sua aparência, de cabelos curtos, corpo magro e traços pouco delicados, permitem-na confundir com um menino. E é o que ela finge ser ao fazer amizades no novo apartamento para onde a família se mudou. Não era o objetivo dela, como deixa implícita a direção de Sciamma ao fazê-la calar-se por um momento quando lhe perguntam seu nome pela primeira vez, mas a maneira que encontra para não ser rejeitada e se entrosar mais facilmente.

Dando uma maturidade acima do comum para crianças da idade, mas nunca exagerando, o roteiro constrói a personalidade de sua protagonista como uma pessoa já consciente de sua condição “diferenciada”, mas que jamais busca mudar ou moldar-se à estética padrão. Não há como, explicam as sequências comandadas pela cineasta que não hesitam em apreciar o arborizado bairro que agora habitam. Está em sua natureza. Pode até ser uma opção a maneira como ela se veste, mas o seu comportamento é imodificável. Ela nasceu assim e dessa mesma forma se sente confortável.

Com mais atitude do que aparenta ter, o filme, que até o seu segundo ato aborda o processo de aceitação de Michael/Laura pelos novos amigos, testa o espectador ao introduzir a temática sexualidade com uma discrição e um cuidado invejável, defendendo a mesma teoria que tão bem desenvolveu até ali. Um sorriso depois de um simples e inocente beijo é o suficiente para que “Tomboy” ouse em suas pretensões humanísticas e faça deste, provável e infelizmente, o primeiro imbróglio em que Laura se envolverá.

Mas se depender da desenvolvida sociedade apresentada por Céline Sciamma, ela sofrerá menos, especialmente por pertencer a uma família que a aceita como ela é, que a deixa se vestir como deseja, que não a julga. A mãe, por exemplo, não expressa estranhamento ao vê-la maquiada pela primeira vez, chegando a fazer um curto elogio sobre a face quase escondida pela timidez da garota. O pai também jamais a pressiona. Já com a irmã mais nova compartilha os momentos mais divertidos, em uma relação bonita e de grande química entre as talentosas Zoé Héran e Mallon Lévanna, como Jeanne, que seria ainda uma melhor personagem se fosse dona de uma consciência mais condizente com sua idade.

Sem nomear os pais das garotas, Céline Sciamma, na verdade, quase vislumbra uma família perfeita, que respeita seus gostos e a sua forma natural de ser. A cor neutra na roupinha do novo irmãozinho revela um lar harmonioso, não abalado tão facilmente, onde as discussões raramente acontecem. Exatamente como é em “Tomboy”, um longa ousado de temática importante, mas que a aborda sem exageros ou dramatizações melodramáticas, situações corriqueiras em filmes sobre o assunto, as quais que não resistem à delicadeza dessa cineasta, que como poucos fala sobre sexualidade.

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Darlano Dídimo é crítico do CCR desde 2009. Graduado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará (UFC), é adorador da arte cinematográfica desde a infância, mas só mais tarde veio a entender a grandiosidade que é o cinema.

Darlano Didimo
@rapadura

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