Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 08 de outubro de 2011

Capitães da Areia: adaptação é uma homenagem ao espírito baiano

Não importa quantos esforços e talentos estejam envolvidos, a Bahia sempre será território das palavras e personagens de Jorge Amado. Claro que não custa nada tentar...

Jorge Amado cantou como ninguém as belezas, o gingado e a sexualidade aflorada da Bahia. Por meio de seus personagens, apresentou ao Brasil e ao mundo a cultura que caminhava por entre as ruas sinuosas do Pelourinho e corria pelas dunas da praia do Mangue Seco, com parágrafos que de tão bem trabalhados ainda são capazes de despertar os sentidos de seus leitores. Quem já leu sabe que é possível sentir o cheiro do suor de Tieta, correndo pela areia enquanto rejeita e deseja o mascate no primeiro capítulo do livro que leva seu nome. E as receitas detalhadas de Nacib, aquele brasileiro das arábias, fazem roncar nosso estômago como se cada letra impressa fosse um ingrediente suculento. Essa é a força da literatura de Jorge Amado. E é justamente isso que não aparece em “Capitães da Areia”, uma tentativa que, infelizmente, não passa da vontade.

A história do grupo de pequenos golpistas de Salvador, liderado pelo emblemático Pedro Bala, perde o viço e parte da malícia colocados por Amado na obra original. A adaptação para o cinema foi lançada para dar início aos festejos do centenário de nascimento do escritor, que será comemorado em 2012, mas a homenagem acabou morrendo em seu propósito. Dirigido por Cecília Amado, neta de quem você está pensando, “Capitães da Areia” é o típico filme que falha por dois motivos: seu roteiro tenta abranger a totalidade da obra original e sua execução se perde em meio ao exagero de recursos estilísticos utilizados. Na ficha técnica do longa, roteiro e direção aparecem como atribuições de Cecília.

São quase 300 páginas de uma narrativa que, embora divida seus parágrafos entre as dezenas de personagens envolvidos na trama, consegue aproximar o leitor das peculiaridades, ambições e personalidade de cada um deles. Para fugir da exaustão, a apresentação dos pequenos é feita gradativamente, na medida em que os causos são narrados. E muitos são os episódios criados pelo autor nas páginas de sua obra, o que torna inviável a apropriação, por parte de um filme cuja duração não ultrapassa as duas horas, de todos esses momentos. O roteiro de Cecília e Hilton Lacerda falha ao tentar incluir cada episódio em sua narrativa, o que acaba resultando em uma construção por demais segmentada, com momentos que não guardam ligação alguma com o que vai ser exibido a seguir. A estratégia talvez funcionasse melhor em um seriado televisivo, como já havia sido feito pela Rede Bandeirantes no final dos anos 80, formato que garante maior liberdade para um trabalho dividido em episódios.

Em “Capitães da Areia”, uma grande colcha de retalhos é armada por pequenas histórias envolvendo os membros do grupo. Em algumas delas, ainda é possível enxergar tentativas de certo aprofundamento em seus personagens, como é o caso de Sem-Pernas durante o tempo em que convive com sua nova família adotiva. Apesar de realmente oferecer ao público certa aproximação com alguns dos garotos, no momento seguinte tudo é deixado de lado abruptamente para dar espaço para outra micro-história que se anuncia. E todo o filme é construído tendo como base essa sobreposição de pequenos casos, descartados logo que resolvidos.

No trabalho de direção, também é perceptível o esforço de Cecília na construção de um filme esteticamente agradável. É bem verdade que em alguns momentos sua câmera flutua de modo curioso entre os personagens e na captura da rotina de Salvador nos anos 30, mas na maioria das sequências assistimos ao exagero de sua boa vontade. Câmeras lentas, imagens aceleradas, cortes secos e pequenas sequências captadas de vários ângulos fazem a composição do filme parecer um expositor de possíveis técnicas cinematográficas. Em nenhum momento a direção faz sua opção, e é o espectador que precisa se habituar aos modos como a história é narrada.

Outro ponto que poderia ser tomado como problema, mas é preferível que seja abordado de modo construtivo, é a atuação do elenco principal. Não estamos acompanhando atores com larga experiência diante das câmeras, e é perceptível o desconforto de alguns deles em sequências específicas, mas a verdade é que fica difícil mergulhar na história quando a maioria das atuações soa de modo teatral e completamente antinatural. Mesmo assim, é reconfortante ver o esforço dos jovens atores e perceber o entrosamento que, aparentemente, foi formado entre eles.

A neta de Jorge Amado ainda merece receber seus louros, sobretudo por ter reavivado junto ao público uma das histórias imortais do escritor baiano. Sob esse aspecto, sua homenagem é completamente válida, e qualquer coisa que traga de forma positiva e respeitosa o nome de Amado de volta aos holofotes merece ser reconhecida. Ninguém vai sentir o gosto da Bahia assistindo à “Capitães da Areia”. Também é difícil, mesmo com a imagem sendo exibida, sentir o cheiro das mulatas de flor na cabeça e o sabor do acarajé. Só Jorge Amado conseguia isso. Não é todo dia que nascem os mestres.

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Jáder Santana é crítico do CCR desde 2009 e estudante de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo. Experimentou duas outras graduações antes da atual até perceber que 2 + 2 pode ser igual a 5. Agora, prefere perder seu tempo com teorias inúteis sobre a chatice do cinema 3D.

Jader Santana
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