Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 03 de dezembro de 2010

O Garoto de Liverpool

Um corajoso retrato da juventude problemática de um dos maiores gênios da música.

“Ele é um autêntico homem de lugar nenhum”. Este é o trecho inicial de “Nowhere Man”, música icônica de John Lennon que inteligentemente serviu de referência para o titulo original do filme em questão, “Nowhere Boy”.

Apesar da influência e do reconhecimento do compositor na história moderna, nunca antes um filme havia retratado de forma tão eficiente sua personalidade. Dirigido pela britânica Sam Taylor-Wood (em seu ousado trabalho de estreia), com o roteiro de Matt Greenhalgh, (responsável também pelo excelente “Controle – A História de Ian Curtis”, que conta a trajetória do polêmico vocalista da banda Joy Divison), e baseado no livro “Imagine This: Growing Up With My Brother John Lennon”, escrito pela meia-irmã do Beatle, Julia Baird, o filme respira veracidade e referências marcantes da vida daquele que um dia ajudaria a transformar o mundo da música.

A história nos leva para a Liverpool dos anos 50, apresentando um jovem Lennon (Aaron Johnson) que ainda não entendia nada de música. Para aqueles que conhecem um pouco da história do cantor, sabem que sua juventude foi extremamente tumultuada. Ele foi criado pela famosa tia Mimi (Kristin Scott Thomas), típica dona de casa da classe média britânica, com emoções e atitudes contidas, algumas vezes ásperas e frias demais. Apesar da postura rígida, Lennon se dava bem com ela, mas foi depois da morte de seu tio George (David Threlfall) que as coisas começaram a mudar.  No enterro, ele viu a mulher que desconfiava ser sua mãe. De cabelos vermelhos, ela se chamava Julia (Anne Marie Duff).

Morando apenas algumas quadras de sua casa, Julia era peculiar. Lennon então se aproxima dela, sendo recebido de forma calorosa, ou podemos dizer exageradamente afetuosa, pois, sendo muito nova, ela mais parecia uma namorada do que mãe do garoto, devido aos constantes abraços e beijos dados entre os dois. Um inverso então se forma. Longe da rigidez de Mimi, Lennon aproveita seu tempo com Julia, que é a responsável por apresentar o famoso Rock ‘n’ Roll para o jovem. Apesar dos problemas que viriam a surgir em meio a essa disputa entre Mimi e Julia, a relação de Lennon com sua mãe se solidifica.

O roteiro é construído de forma muito inteligente. Os dilemas do rapaz, envolvendo sua busca pelos verdadeiros motivos do abandono da mãe, ou mesmo do silêncio da tia, são trabalhados de forma eficiente, com uma profundidade dramática excepcional e, ao mesmo tempo, seu amor pela música cresce de maneira orgânica. Sua evolução no banjo, instrumento que aprendeu a tocar com a mãe, é perfeita. Depois disso vem seu primeiro violão, presente de Mimi, assim como sua primeira Hoffner.

Um conjunto começa a se formar. O “The Quarrymen” vai evoluindo conforme os novos integrantes vão surgindo. Primeiro é Paul McCartney (Thomas Sangster), em uma cena hilária, que se apresenta para Lennon (com certeza os fãs vão adorar). Depois Paul traz George (Sam Bell), muito habilidoso com a guitarra. Na época, Lennon mal sabia direito como tocar, mas já possuía muita personalidade. Com a entrada dos novos companheiros, principalmente McCartney, é que tudo começa a ficar mais sério. Os dois passam a treinar juntos e compor suas primeiras canções, como a ótima “In Spite of all the Danger”. Julia e Mimi sempre incentivaram Lennon, apesar de algumas vezes Mimi tirar o violão do garoto devido ao péssimo comportamento na escola. Enfim, tudo segue relativamente bem até o trágico acidente de Julia.

O time de atores se mostra inspirado. Aaron Johnson surpreende como John Lennon e capta perfeitamente a essência do cantor. Está tudo lá: a fala arrastada e o sotaque carregado, os olhos caídos enquanto faz alguma piada infame. Aparentemente é difícil enxergar Lennon no rapaz, mas ao visualizar a imagem do cantor, ainda jovem, no contexto da interpretação de Aaron, o resultado acaba sendo excelente. A atuação em “Kick-Ass: Quebrando Tudo” prova a versatilidade do ator.

Mimi também está muito bem representada pela experiente Kristin Scott Thomas, que acha o tom exato para a personagem, fazendo que, mesmo com sua dureza, ela tenha um carisma inegável. Anne-Marie Duff também se sai muito bem com a complicada Julia. Sofrendo possivelmente de um transtorno bipolar, a mulher tem altos e baixos vertiginosos, sendo eles catalisadores de suas atitudes condenáveis.

Thomas Sangster segue a mesma linha de Aaron com seu McCartney. Com muita competência, ele reproduz de forma verossímil seu personagem, apresentando os trejeitos, a fala mansa e coesa do astro (com as sobrancelhas sempre erguidas e a cara de bom moço). Sendo bem explorado, o filme faz referência a futuros atritos envolvendo mulheres em meio a banda, demonstrando a postura de líder que McCartney viria a ter junto a Lennon.

Sam Bell acaba tendo pouco espaço com seu George, mas cumpre seu papel, como um guitarrista que está ali para aproveitar o momento ao máximo, muito diferente do homem sério e calado que iria se tornar. Com os atores cantando de forma eficiente, a obra apresenta ainda uma trilha sonora e incidental motivante, calcada nos clássicos dos anos 50. Uma verdadeira aula de música.

Com muitas referências, o filme é um prato cheio para os fãs, que logo no começo já notaram o acorde aberto e estridente de “Hard Day’s Night”. A produção se destaca também com a descrição dos fatos e da época. Para quem já viu fotos da “The Quarrymen” tocando em cima do caminhão em uma festa da cidade, vai notar a semelhança indiscutível. Outros momentos, citados diversas vezes por Lennon em entrevistas, marcam presença, como a referência a seu amigo Stu, grande influência para o cantor, e o dia em que foi ao cinema e resolveu virar um astro do rock, e por ai vai.

No final, “O Garoto de Liverpool” trata com respeito seu personagem principal. Amparado por um ótimo roteiro, podemos vislumbrar os problemas que fizeram de John Lennon uma pessoa tão complexa: a falta de identidade, um possível complexo de Édipo, as perdas e os momentos traumáticos. Por mais poética que a obra possa ser, ela resume bem esta fase importante na vida de Lennon e seus companheiros.

Além de presentear os fãs com uma cena emocionante nos momentos finais, protagonizada pelos amigos de banda, a diretora Sam Taylor-Wood mostra sua qualidade, alcançando uma condução competente e criativa. Alguns problemas existem, mas são praticamente relevados pela força da história que está contando. Apesar de todas as camadas, a direção capta aquilo que fez de Lennon um astro: sua simplicidade na hora de fazer música, que misturava a pureza do rock com a inovação do pop, ritmo contemporâneo alicerçado por ícones como Billie Holiday e Elvis Presley. Essa simplicidade é que o aproxima de todos, fazendo de suas canções obras inesquecíveis.

Ronaldo D`Arcadia
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