Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 07 de agosto de 2010

A Origem (2010): um dos blockbusters mais inteligentes e originais da história

Christopher Nolan novamente desafia convenções e entrega outra ode de amor ao cinema em um dos blockbusters mais inteligentes e inovadores da história. Há um minotauro no labirinto e ele não é nada do que você poderia esperar...

No final de “O Grande Truque”, há um discurso do personagem vivido por Hugh Jackman naquele filme no qual é falado que o papel da arte é tirar o ser humano de um mundo prosaico e levá-lo a acreditar em algo além da mediocridade. De certo modo, Christopher Nolan continua o discurso daquele longa neste maravilhoso “A Origem”, desta vez lidando com a temática dos sonhos de um modo bem diferente de interpretações anteriores.

Trabalhando com um roteiro de sua própria autoria, e que encontra ecos em toda a sua filmografia, o cineasta nos apresenta a seu personagem principal, Don Cobb (Leonardo DiCaprio), um ladrão profissional especializado em subtrair segredos industriais diretamente do subconsciente das suas vítimas, por meio dos sonhos.

Cobb e seu parceiro, Arthur (Joseph Gordon-Levitt), são contratados pelo misterioso Saito (Ken Watanabe) para realizar um serviço diferente do que estão habituados e, teoricamente, quase impossível: inserir uma ideia no subconsciente do bilionário Robert Fischer (Cillian Murphy).

Trabalhando com uma equipe bem eclética, que conta ainda com a arquiteta Ariadne (Ellen Page), o químico Yusuf (Dileep Rao) e o “falsificador” Eames (Tom Hardy), Cobb esconde de seus companheiros um segredo potencialmente letal, algo que remete a uma tragédia envolvendo sua esposa, Mal (Marion Cotillard).

Evito falar o máximo possível dos pormenores da trama, pois esta é um intrincado labirinto que se desenvolve de forma fabulosa frente ao espectador. Seria um absurdo revelar qualquer informação que estragasse a experiência de conferir o desenrolar da narrativa. Nolan fez algo raro para os realizadores contemporâneos (de qualquer arte), que é confiar na inteligência de seu público, acreditando que este é capaz de compreender uma obra que não tenta se explicar a cada dez minutos.

Não que o filme queira deixar o espectador perdido, longe disso, mas as respostas e pistas apresentadas surgem de maneira orgânica, dentro da própria história. Conceitos interessantes são abordados de forma econômica e precisa pelo cineasta, deixando que a audiência resolva certos mistérios apresentados, participando de forma ativa da película, principalmente de seu final que, de maneira brilhante, deixa margem para diversas interpretações.

Do ponto de vista técnico, o longa é virtualmente perfeito. Lidando com diversos níveis de realidade, seria fácil para o espectador se perder durante a fita. Nesse sentido, aparece a genialidade de Nolan e a competência e dedicação do montador Lee Smith, que conseguem tornar a narrativa do filme não apenas compreensível, como também irresistível.

Elogiar o trabalho do cinematógrafo Wally Pfeister seria redundante. Nolan, Pfeister, o veterano desenhista de produção Guy Hendrix Dyas e a equipe de efeitos especiais da película a transformam em um verdadeiro banquete para os olhos dos espectadores. Cada objeto de cena, cada enquadramento e todas as sequências que envolvem efeitos, sejam estes práticos ou digitais, tem a sua razão de existir, sempre servindo à história.

Exemplo disto é a cena do café, na qual Nolan realiza uma série de explosões de um modo tão diferente e criativo que torna mágica a destruição daquele sonho. Aliás, todos os momentos em câmera lenta são tão bem retratados e encaixados na narrativa de maneira tão orgânica que fica difícil imaginar diretores utilizando tal recurso de maneira indiscriminada a partir de agora.

Possibilidades de paradoxos e da distorção da realidade onírica por elementos internos e externos também são muito bem retratados, embora possam frustrar aqueles que esperavam algo mais psicodélico. Mas tal restrição faz sentido dentro da lógica da produção, pois o próprio filme deixa claro que o excesso de elementos estranhos à realidade faria a vítima e seu subconsciente perceberem a presença de elementos estranhos.  Uma entrega de Nolan ao bizarro e ao estranho fugiria completamente da proposta do filme e até da própria filmografia do cineasta.

As diversas cenas de ação também se aproveitam do cenário mental da produção e resultam em sequências inovadoras, relevantes e memoráveis, com a luta em gravidade zero protagonizada por Arthur e a perseguição automobilística no começo do segundo ato merecendo um destaque à parte. Devo ressaltar ainda a fantástica trilha sonora de Hans Zimmer que, além de estabelecer o clima para as cenas de ação, consegue ainda aumentar a tensão presente em momentos que já seriam tensos por natureza.

Nolan novamente reúne um elenco estelar, que ainda ganha o reforço de veteranos como Pete Postlehwaite, Tom Berenger e Michael Caine, ator que já virou figura carimbada nos trabalhos do diretor. Mesmo com tantos talentos reunidos no mesmo trabalho, fica difícil citar destaques, pois estão todos uniformemente perfeitos em seus papéis.

DiCaprio surge em cena como um homem competente, mas fragilizado. Tal fragilidade não surge não apenas como efeito colateral de seu ofício, mas principalmente por suas experiências pessoais. Cobb, aliás, possui conflitos e inseguranças bastante similares aos sofridos por Teddy, personagem vivido pelo ator em “Ilha do Medo” e seria fácil para ele apenas repetir a seu desempenho naquele trabalho, mas ele resolve ir além e transforma Cobb em uma figura completamente tridimensional.

Marion Cotillard também surge honrando sua a missão de retratar em cena uma clássica e sedutora femme fatale que é, ao mesmo tempo, uma tentação, uma ameaça e um objetivo para Cobb. Mal é mostrada de maneira menos profunda, se assemelhando mais a um arquétipo, algo que não é nenhum demérito para Cotillard ou para o roteiro, acreditem. Há ainda uma brincadeira no filme, que faz uma menção ao papel mais famoso da atriz, em um easter egg fabuloso para os apaixonados por cinema.

Os demais personagens podem não ser tão desenvolvidos, mas não deixam de ser interessantes. Joseph Gordon-Levitt e Ellen Page, além de dividirem uma ótima cena, possuem uma excelente química com DiCaprio, sendo os laços mais constantes de Cobb durante a trama. Page, em especial, divide dois momentos fabulosos com o protagonista. Tom Hardy transforma seu Eames em um adorável canalha e Ken Watanabe surge soberbo como o misterioso Saito. Cillian Murphy aparece um tanto quanto passivo durante boa parte do filme, mas tem seu momento ao sol durante o terceiro ato da produção.

Christopher Nolan segue sem erros em sua carreira como cineasta e “A Origem” deve ser lembrado não apenas como um dos melhores filmes de 2010, mas também como um dos blockbusters mais inteligentes e originais da história do cinema. Não seríamos nós intrusos nos sonhos dos diretores, roteiristas e produtores? Há um pouco de Don Cobb em cada cinéfilo, principalmente quando a nossa realidade se torna menos atraente que a ficção.  Recomendado.

Thiago Siqueira
@thiago_SDF

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