Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 06 de agosto de 2010

A Origem (2010): a perfeição de um peão que não para nunca de girar

Simplesmente arrebatador. Esta é uma obra prima a ser reverenciada.

Parece que a antiga lógica “BlockBuster vs. Arte” vem perdendo força nos últimos tempos. Doa a quem doer, é verdade. E um possível marco simbólico desta realidade é o filme “Avatar”, feito com milhões de dólares para gerar bilhões de dólares, e ainda assim ser genial em termos de criatividade cinematográfica. “A Origem” é um exemplo dessa “nova vertente” do cinema mundial, onde um diretor brilhante, neste caso Christopher Nolan, consegue unir todos os elementos necessários para o sucesso ($$) nos dias hoje e ainda ter o luxo de contar uma história inesquecível e de qualidade.

O “sonho” começa com Cobb (Leonardo DiCaprio) e Arthur (Joseph Gordon-Levitt) tentando roubar uma informação do misterioso Saito (Ken Watanabe). Infelizmente a linda Mal (Marion Cotillard), mulher de Cobb, estava neste “sonho” também, e sua tendência é sempre estragar as coisas. Porém, Saito tinha uma carta na manga: Tudo aquilo foi um engodo, apenas um teste para Cobb e sua equipe. Ele precisa de um tipo inusitado de serviço, por isso queria ver o resultado com seus próprios olhos, mesmo que eles estivessem fechados. Sim, como podem ter percebido, estou falando de sonhos. Cobb é um especialista em invasão de sonhos. Como isto é feito? Que tipo de tecnologia eles usam para isso? Não é explicado, e particularmente isso pouco importa, é outra história.

Encurralado pelo poder de Saito, homem rico e influente, Cobb aceita o serviço, que tem uma pequena particularidade, ele não precisa roubar nenhuma informação, ou melhor, nenhum segredo. Ele precisa plantar algo forte o bastante para mudar destinos e nações: uma ideia.  O alvo é Robert Fischer Jr. (Cillian Murphy), herdeiro de uma mega corporação. O objetivo: fazer com que ele divida sua empresa após a morte do pai. Uma estratégia corporativista dos tempos modernos.

A missão não  é fácil. Aparentemente se falamos “Não pense em um elefante”, logo imaginaremos um, ou seja, a mente sempre irá perceber quando é induzida a acreditar em uma coisa. Talvez manipulação fosse um caminho mais certo, só bem mais demorado. Embora todos duvidem que tal coisa possa ser feita, Cobb afirma o contrário, mas, para que isso funcione, seria preciso ir bem fundo, um sonho dentro de outro sonho, dentro de outro sonho. Pode ser feito, mas pelo fato de ser muito instável, é preciso sedativos pesados. Dentro de um sonho você sente dor, mas ao morrer apenas acorda, mas se estiver sedado você só acordará quando o efeito da droga passar, e nesse meio tempo, em que está morto, você irá para algum lugar de sua mente onde não gostaria de estar. No sonho o tempo é lento, cinco minutos são quase uma hora, e quanto mais profundo você vai, quanto mais sonhos você imerge dentro de um mesmo sonho, mais lento fica o tempo, sendo que horas podem se tornar anos.

Nesse local inusitado, todas as particularidades do subconsciente de quem tem o sonho invadido são projetadas de formas simbólicas, como por exemplo, segredos, que são protegidos em cofres e bancos. Mas uma ideia, essa precisa ser inserida dentro de uma verdadeira fortaleza.

O conceito de “A Origem” é brilhante. Sendo impossível evitar uma comparação prematura, o longa se assemelha a genialidade por trás de “Matrix”, mas em momento algum disputa com a obra no quesito criatividade. Com uma direção simplesmente inspiradora, o visual é arrasador, assim como suas cenas milimetricamente elaboradas. O trabalho de Nolan com certeza é dobrado, devido aos problemas encontrados ao se filmar com IMAX (peso da câmera, enquadramento, ruído), mas a qualidade é impressionante e o resultado na tela grande incomparável. Apenas poucos por cento de um rolo de filme IMAX são salvos na pós-produção, mas este mínimo é o suficiente para entregar a mais perfeita definição que existe hoje, em 70 mm. Utilizando sabiamente o slow motion e efeitos especiais incríveis, o diretor cria sequências de literalmente tirar o fôlego, sendo os momentos finais do longa, um dos atos mais tensos do cinema. Acompanhamos em tempo real três cenários diferentes, onde todos os personagens estão inseridos ao mesmo tempo, e cada atitude, movimento ou mesmo som, influenciam na realidade destes locais.

Todo escrito por Nolan, o filme invade e reinventa o mundo dos sonhos sem ao menos pedir licença. Somos informados que, com a aparelhagem certa, é possível entrar nos sonhos de alguém, e lá, conscientes, manipular quase tudo. Existe um construtor, interpretado no filme pela jovem Ellen Page. Esta arquiteta do inconsciente tem o trabalho de planejar os cenários: prédios, ruas, pontes e então a mente preenche os detalhes. Enquanto treina suas habilidades em uma simulação, podemos ver a grandeza e o poder que existe em suas mãos, quando uma cidade toda se dobra como uma folha de papel. Já as pessoas que povoam este mundo ilusório surgem do subconsciente do sonhador, rostos familiares, projeções de sua vida, ou mesmo verdadeiros pesadelos.

A trilha sonora é a cereja do bolo. Ela é composta pelo mestre Hans Zimmer, que tem em seu currículo desde “O Rei Leão” a “Gladiador”, da franquia “Piratas do Caribe” a nova trilogia “Batman” (assim esperamos).  Seus temas sombrios, melancólicos e por muitas vezes arrepiantes são fundamentais para o ritmo e desenvolvimento da trama. Tudo fica melhor com as trilhas de Zimmer.

O astro você  conhece. Leonardo DiCaprio, que parece não errar nunca, talvez devido ao fato de sempre escolher os melhores trabalhos. Ele entrega novamente um homem perturbado, que tem uma relação difícil com sua esposa e um passado muito complicado. De tão fortes, seus sonhos conturbados e cheios de marcas dolorosas acabam sendo um grande problema para seu trabalho. Ellen Page também está excelente como a arquiteta já citada, Ariadne. Com simplicidade, ela interpreta esta estudante que tem a possibilidade de levar a “pura criação” aos limites mais extremos. Meiga e muito inteligente, sua participação na equipe é de fundamental importância para o resultado final.

Joseph Gordon-Levitt chama atenção como o fiel escudeiro Arthur. Ator experiente, Levitt começou cedo e somente agora sua carreira está recebendo o devido valor, fato que pode ser consumado no próximo Batman (Uma charada para vocês). O time de apoio conta ainda com Tom Hardy como o falsário Eames, Ken Watanabe como o poderoso Saito, Cillian Murphy como o triste Robert Fischer Jr., alvo da empreitada principal. Marion Cotillard emprega todo seu talento como a assustadora e perturbada esposa Mal, uma das vilãs mais inusitadas dos últimos tempos. Personagens perfeitamente construídos e explorados, atores empolgados e inspirados pela incrível história.

Isso pode parecer besteira, mas quando saí do cinema após assistir “A Origem”, olhei para tudo de uma forma diferente. Durante aquele tempo, ainda anestesiado pelo filme, tudo realmente parecia um sonho, todas as pessoas, os carros, os prédios, que poderiam naquele momento se dobrar sobre mim, e eu acharia bem normal. O sentimento passou, mas não o deslumbre da obra. “A Origem” é um filme que, além de te fazer pensar, te faz sentir. Depois dos excelentes “Amnésia”, “Insônia”, “Batman Begins/Cavaleiro das Trevas” e “O Grande Truque”, Cristopher Nolan realiza sua obra prima, pelo menos até o momento. Com um final incrível, fica a pergunta: tudo é sonho ou realidade? Para esta pergunta não existe certo ou errado, tudo é possível, até um peão que não para nunca de girar.

Ronaldo D`Arcadia
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