Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 05 de agosto de 2010

A Origem (2010): não é todo dia que se assiste a um filme assim

Conduzido com mãos cirúrgicas e um olhar operístico por Christopher Nolan, o longa é muito mais do que um blockbuster barulhento, é uma mostra da capacidade que o cinema tem de nos manipular por meio de imagens e sons e nos jogar sem pena em uma trama complexa e explosiva.

Não é todo dia que se assiste a um filme como “A Origem”, novo trabalho do atual Midas hollywoodiano Christopher Nolan (papel que já coube a gente tão díspare quanto Steven Spielberg, Oliver Stone, M. Night Shyamalan, Peter Jackson etc). Blockbuster barulhento com um elenco estelar, uma produção milionária, cenas de ação acachapantes e um marketing pesadíssimo, o longa já nasce com status de cult e assento garantido entre as produções que ganham uma aura clássica com o passar do tempo. Daqui a alguns anos, “A Origem” estará para o cinema de hoje assim como “Blade Runner” e “Matrix” estão para o dos anos 1980 e 1990, respectivamente.

Exageros a parte, uma coisa é certa: este é o filme que definirá a carreira de Nolan. Diretor que despontou com produções independentes (os ótimos “Amnésia” e “Insônia”), Nolan abraçou o sistema e a indústria e, ainda assim, conseguiu imprimir uma marca em filmes inteligentes e muito acima da média. Redefiniu para o cinema um dos personagens mais icônicos da cultura pop, ninguém menos que Batman (no correto “Batman Begins” e no surpreendente “Batman – O Cavaleiro das Trevas”), e sempre apostou em roteiros no mínimo ousados (“O Grande Truque”), mesmo dando um verniz palatável a eles.

“A Origem” segue esse mesmo caminho, mas vai além, demonstrando o quanto Nolan é mais do que um grande diretor. Ele é, sim, um mestre em costurar tramas complexas e manipular imagens e sons em prol de histórias cheias de camadas, narrativas ou de interpretações. Mais do que um mero filme, “A Origem” é cinema em sua essência, construído por meio de uma edição absurdamente coerente e eficiente. É também a prova de que Nolan possui um olhar apuradíssimo e quase operístico para a sétima arte, seja para a composição de planos e imagens de cair o queixo, seja no modo como conduz com mãos quase cirúrgicas uma trama que poderia deixar metade da plateia confusa ou entediada.

Mas para nosso sorte, o longa é qualquer coisa menos confuso ou chato. A trama que envolve sonhos e sonhos dentro de sonhos é complexa, mas Nolan tem o talento necessário para deixá-la compreensível aos olhos do espectador. Isso tudo ainda com o bônus de não torná-la cerebral demais, apostando nos talentos de Leonardo DiCaprio – o ator mais interessante da atualidade e que dá um tom diferente a um papel bem parecido ao que ele mesmo interpretou em “Ilha do Medo” – e Marion Cotillard para dar ao filme um viés mais emocional. Os dois estão devidamente acompanhados por um elenco de peso e que embarca sem reserva no conceito da obra (Tom Hardy, Ellen Page, Cilliam Murphy, Ken Watanabe, Joseph Gordon-Levitt e até o desaparecido Tom Berenger).

O resultado é  um longa inteligente e envolvente narrado de forma magistral e em um crescendo cada vez mais raro de se ver atualmente. Sim, as explosões e as cenas de ação estão lá, nenhuma gratuita ou estendida à exaustão. Cada uma delas funciona como parte integrante de uma história que apresenta seus elementos aos poucos, em meio a uma direção de arte impressionante e uma trilha sonora ora emotiva, ora funcional de Hans Zimmer.

Mas “A Origem” não é apenas um achado narrativo ou em termos de design de produção. O filme de Nolan se destaca da multidão por ser original em várias frentes, ainda que toque em assuntos mais do que explorados pelo cinema. Os sonhos nem de longe apelam para o onírico de um David Lynch, por exemplo. O uso de câmeras lentas, a presença de um “arquiteto” e mesmo a força narrativa das cenas de ação são puro “Matrix”, mas Nolan trabalha em outra chave, menos mítica e filosófica e mais pé no chão. A importância e força da trilha sonora e o pião que acompanha o personagem de Leo nos lembram “Blade Runner”, Vangelis e um certo unicórnio de papel. Até mesmo o modo como os sonhos são manipulados e as lembranças construídas/destruídas nos traz à memória “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”, mas o romance aqui parte da tragédia e não do lúdico.

Dessa forma, o longa de Nolan pode trazer todas essas referências na sua construção, mas ainda assim é original na forma passional como é defendido pelo cineasta e seu time. Mexendo com temas cada vez mais caros à sociedade contemporânea (os limites entre o que é e não é real; até que ponto nossas lembranças e memória podem ser manipuladas; ou como deixamos nos levar por nossos sonhos), “A Origem” foge do cenário mais comum de uma ficção científica e joga o espectador em um mundo que oscila entre o real e o imaginado de modo exemplar.

Pode não ser um longa fácil ou mesmo acessível para todos, ainda que a personagem de Ellen Page funcione como um espelho da plateia, sempre se questionando ou buscando respostas. Mas é o melhor exemplo do que o cinema atual ainda é capaz de fazer. “A Origem” é um filme que pede para ser visto novamente. E é um longa que se revê com prazer. Não é todo dia que se assiste a um filme assim. Não mesmo.

Fábio Freire
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