Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 13 de março de 2010

O Segredo dos Seus Olhos (2009): um delicioso labirinto narrativo

Filme de Juan José Campanella foi a grande surpresa do último Oscar. A narrativa pungente justifica o prêmio.

Com a disputa pela estatueta de Melhor Filme polarizada entre “Avatar” e “Guerra ao Terror”, a categoria de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar 2010 foi pouco discutida. A vitória de “A Fita Branca”, dirigido por Michael Haneke, era dada como certa. Vencedor do último Festival de Cannes, o polêmico longa austríaco parecia não ter concorrentes à altura no páreo. Contudo, a carreira internacional bem mais discreta do argentino “O Segredo dos Seus Olhos” não impediu que a Academia optasse por uma escolha menos óbvia. Foi o segundo filme argentino a conquistar a estatueta, 25 anos depois do feito de “A História Oficial”, de Luis Puenzo.

O diretor Juan José  Campanella, indicado anteriormente pela comédia dramática “O Filho da Noiva” (sucesso de 2001 que ajudou a consolidar a boa fase internacional do cinema latino-americano), desbancou o favorito europeu e conquistou a atenção do público para sua obra arrebatadora. Manipulando a validade do tempo e o alcance da memória, a trama acompanha os ecos de um intrigante assassinato no dia-a-dia do oficial de justiça que acompanhou o caso, 25 anos depois. Agora aposentado, Benjamín Esposito (Ricardo Darín) se dispõe a utilizar o tempo livre para reaver os detalhes da história. A falta de solução para o crime o incomoda e o inspira a escrever um livro com base em suas lembranças da época.

Ao brincar com os vestígios do passado e convocar o espectador a uma interpretação menos limitada a datas e calendários dos eventos que marcaram a juventude de Benjamín, “O Segredo dos Seus Olhos” lança um pungente questionamento à noção mais comum que temos do tempo. Campanella consegue expor a atemporalidade de narrativas que se relacionam e se completam. O cineasta argentino acredita que a vida é uma linha narrativa única e os acontecimentos desencadeados durante esse intervalo não são desconsiderados apenas porque o tempo passou ou porque os envolvidos deixaram de rememorar ou pensar nos fatos.

O clima de revival do passado remete ao cinema de Pedro Almodóvar – sem os excessos do diretor espanhol, claro. Assim como ocorre em obras como “Tudo sobre Minha Mãe” e “Abraços Partidos”, os conflitos mal resolvidos de décadas atrás tomam conta do presente dos personagens. O retorno abrupto de capítulos do passado é tão intenso que os encoraja a lidar novamente com feridas que não cicatrizaram por inteiro. Nesse sentido, o maior êxito deste longa é dar unidade a episódios aparentemente avulsos, costurando uma complicada teia de ações que só faz sentido quando contemplada por inteiro.

Difícil de ser classificado nos gêneros pré-definidos do cinema, o longa de Juan José Campanella também apresenta afinidades com obras como “Dália Negra” e “Zodíaco”. Da mesma forma que nos filmes de Brian De Palma e David Fincher, o objetivo do diretor argentino não é solucionar um crime, mas retratar os efeitos dessa passagem na vida de seus protagonistas. O longa ganha em densidade, se comparado aos dois exemplos citados acima, justamente por adicionar o complicador temporal na história e abusar dos recortes narrativos, que conferem uma visão ainda mais ampla de como uma tragédia criminosa pode afetar os profissionais que a investigam.

Confirmando sua competência com o hibridismo de gêneros cinematográficos, Juan José Campanella ainda acrescenta elementos de humor (especialmente com o impagável personagem Sandoval, o colega bêbado) e romance (a paixão mal resolvida entre Benjamín e sua colega de tribunal da juventude), sem resvalar no melodrama barato ou comprometer a originalidade do filme. Mesmo sequências típicas de filmes de ação, como a perseguição no estádio de futebol, não soam deslocadas. Em comparação a “O Filho da Noiva”, este aqui comprova o amadurecimento de seu trabalho, principalmente na pretensão de construir uma narrativa mais requintada e menos auto-explicativa. Enquanto o longa de 2001 entrega suas próprias respostas ao final da projeção, “O Segredo dos Seus Olhos” é o tipo de filme que oferece um pacote de reflexões para o espectador consumir depois da sessão.

A narração redentora de Campanella funciona porque é corroborada por minúcias sutis que fazem toda a diferença. O modo como o diretor filma os olhares, por exemplo. Assim como propõe o título do longa, os olhares compõem um elemento primordial para a caracterização de uma história calcada em um passado em construção. Declarações silenciosas e contidas, ditas apenas com os olhos, relatam a necessidade de resolver pendências e poder seguir em frente. O Oscar acertou? Se “A Fita Branca” surpreende pelo vigor estético, “O Segredo dos Seus Olhos” é um delicioso labirinto narrativo que desafia o espectador disposto a desvendar mistérios atemporais.

Túlio Moreira
@

Compartilhe