Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 18 de junho de 2010

Casamento Silencioso

Esta excêntrica comédia é indicada aos iniciantes do peculiar estilo do cinema romeno.

Tendências atuais da globalização estimulam o interesse por culturas pouco disseminadas. Em relação ao cinema, essa nova realidade tem diminuído o monopólio dos filmes hollywoodianos e facilitado a troca de informações acerca de produções de países bem diferentes, que antes estavam restritas a círculos de exibição alternativa e atingiam um público bastante limitado. A popularização de filmes oriundos de países sem tradição cinematográfica latente possibilitou a curiosidade em torno de produções de lugares tão distintos como Coréia do Sul, Irã, México ou Índia.

Agora é o cinema romeno que chama a atenção de cinéfilos e críticos. O diretor Corneliu Porumboiu é um dos ícones da nova safra de filmes produzidos no país da Europa Oriental. A comédia “A Leste de Bucareste” (2006) conquistou elogios da crítica mundial e o recente “Polícia, Adjetivo” (2009) arrebatou importantes prêmios no último Festival de Cannes. Aliás, o mais importante evento de cinema da Europa escolheu, em 2007, “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias“, do romeno Cristian Mungiu, como o vencedor da cobiçada Palma de Ouro.

Se não arrebatou prêmios significativos nem conquistou o respeito da crítica especializada, “Casamento Silencioso” (2008), de Horatiu Malaele, pode ser uma boa oportunidade aos iniciantes do requintado cinema advindo da Romênia. Híbrido de comédia, drama e suspense, com direito a sequências calcadas em histórias sobrenaturais e nas tradições culturais do país, o filme consegue prender a atenção do espectador diante de tanta maluquice reunida em uma mesma história. Como ocorre em muitos filmes europeus, um evento corriqueiro serve para retratar um importante momento histórico e é utilizado para debater conflitos delicados.

Na trama, a equipe de um programa de televisão focado em histórias sobrenaturais visita um vilarejo em ruínas habitado apenas por assustadoras viúvas enlutadas. A curiosidade acerca da popular tragédia que maculou o povoado décadas antes, durante a dominação comunista na Romênia, provoca um flashback que toma conta da narrativa central. No bucólico cenário campestre do começo dos anos 1950, em meio a tanques de guerra e temidos soldados soviéticos, o vilarejo se mobiliza em torno do casamento de dois jovens. O assassinato de uma garota na véspera da cerimônia instaura o clima sobrenatural, diante da aparição do fantasma da vítima durante os preparativos para a festa.

Mas o momento mais inusitado ainda está por vir. Minutos antes do início do casamento, soldados soviéticos comunicam aos aldeões a morte do ditador Stalin e o luto oficial que durará uma semana. Durante esse período, cerimônias religiosas, festas populares e qualquer outro tipo de manifestação cultural estão proibidos. Como solução para o impasse, os noivos decidem realizar o casamento pela surdina, de madrugada. O farto banquete é apreciado em silêncio, enquanto os convidados tentam interagir por meio de mímica.

Por si só, a longa sequência do casório silencioso vale o filme. A situação surreal, filmada pelo diretor com uma deliciosa influência das comédias do cinema mudo, provoca estranhamento indefectível no espectador diante de tamanha originalidade. Contudo, Malaele se preocupou, desde o início do filme, em criar situações irreverentes que abrissem caminho para a surpresa guardada para os momentos finais. Desse modo, o delírio do casamento é mais apreciado depois de passagens em que os personagens atuam como Charlie Chaplin e outros atores da comédia muda. Para tanto, o cineasta utiliza de recursos narrativos bastante incomuns, como o ritmo típico dos antigos projetores, a fotografia em preto-e-branco e o quadro-a-quadro.

Se é marcante pela irreverência narrativa, o longa também conquista pela capacidade de focar o bizarro diante de cenas ordinárias. O convívio entre os habitantes do pacato vilarejo, por exemplo, não despertaria tanto interesse a priori, mas à medida que o cineasta observa as reações de terceiros aos acontecimentos que passam a movimentar o povoado, conseguimos acreditar na anormalidade do que é aparentemente trivial.

Outro quesito fascinante na obra de Malaele é constatar a capacidade de interferência de um fato externo – aqui, a morte de Stalin – no fluxo de vidas que estão totalmente alheias a ele. Talvez o impacto de “Casamento Silencioso” esteja não em cenas improváveis como a transa no celeiro ou o telefone sem fio durante o banquete, mas na atmosfera insólita que encobre todas as ações e deixa o espectador atônito com tanta excentricidade.

Túlio Moreira
@

Compartilhe

Saiba mais sobre