Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Preciosa

O cineasta Lee Daniels realiza um filme delicado cujas indicações a prêmios dão visibilidade ao longa.

Uma empolgante tendência tem alterado a cara do Oscar nos últimos anos. Filmes independentes chamam a atenção dos votantes do principal prêmio cinematográfico do mundo e conquistam indicações em categorias importantes. A polvorosa em torno dessas pequenas e delicadas obras favorece o grande público, já que o reconhecimento de premiações como o Oscar ou o Globo de Ouro traz visibilidade a filmes que antes estariam relegados a festivais alternativos e sessões pouco concorridas. É esse o caso de “Preciosa”, filme de Lee Daniels que tem disputado o público com produções grandiosas que continuam em cartaz, como “Avatar” e “Amor sem Escalas“.

Aliás, os filmes de James Cameron e Jason Reitman são adversários de “Preciosa” nas categorias de melhor filme e direção nas estatuetas do Oscar que serão entregues no próximo dia 7 de março. O drama cheio de presença de Lee Daniels ainda arrebatou indicações para as atrizes Gabourey Sidibe e Mo’Nique e para os prêmios de melhor roteiro adaptado (é baseado no romance “Push“, da escritora afro-americana Sapphire) e edição. Todas as indicações se tornam perfeitamente compreensíveis após uma revisão da vigorosa história que mistura a realidade social da população negra do bairro do Harlem, em Nova York, e a dura rotina de maus-tratos vivida pela personagem-título.

Preciosa (Gabourey Sidibe) é uma adolescente negra e obesa que sofre abusos sexuais do pai desde criança e tem violentas discussões com a mãe, Mary (Mo’Nique), que a agride física e moralmente. A jovem está grávida pela segunda vez do próprio pai. A primeira filha é portadora da síndrome de Down e vítima de um esquema armado pela descontrolada e violenta personagem de Mo’Nique para arrecadar dinheiro de programas de benefícios sociais do governo. O longa acompanha a difícil decisão de Preciosa em desafiar a família e lutar por uma vida digna e pela convivência com pessoas que possam lhe dar carinho e atenção.

O diretor opta por dirigir seu filme com uma estética híbrida de fábula e documentário. As imagens realistas de abominável crueza se intercalam com passagens de devaneios oníricos e glamurosos imaginados por Preciosa. Nesse sentido, a estrutura do filme lembra, instantaneamente, o expressivo drama franco-belga “O Oitavo Dia” (dirigido por Jaco Van Dormael em 1996), no qual o personagem principal, portador da síndrome de Down, transformava o convívio preconceituoso e repugnante das pessoas em fantasias surreais e sonhos marcados por metáforas de sua rejeição social.

Ao colocar Preciosa como narradora de sua própria história, o cineasta consegue diminuir o efeito exótico dos olhares alheios e tratar sua personagem com naturalidade e concisão. A atmosfera suja – os cenários decadentes e as paisagens tumultuadas do Harlem – facilita a compreensão do ambiente absolutamente inóspito em que vive Preciosa. Mas é a câmera lenta e a edição nervosa nas sequências de estupro e espancamento que demonstram com precisão toda a violência a que a personagem está sujeita.

Diante de tanto sofrimento, a mentalidade de superação de Preciosa, destacada em mensagens poderosas por meio da narração em off, constitui o elemento mais interessante desse filme. Os ciclos de constrangimento e de rancores incrustados que a persegue não são suficientes para lhe tirar a esperança de mudança e de liberdade. Essa superação intimista da personagem diante das adversidades de seu núcleo familiar caracteriza também uma forte contradição colocada para a reflexão do público: como é possível um ser humano tão subjugado e coagido conseguir manter os sonhos e a crença em tempos melhores?

Agredida pelas circunstâncias, Preciosa perde o ânimo em diversas ocasiões e se manifesta decisivamente em tantas outras, mas seu anseio em afastar as cicatrizes do passado é uma de suas mais marcantes e constantes características. A trilha sonora, pontuada pelos ritmos da cultura negra, é cúmplice dessa vontade implacável de triunfar sobre os infortúnios e tragédias. O filme é exitoso ao realizar essa abordagem, ainda que em alguns momentos tropece em doses excessivamente dramáticas.

Mesmo longe de ter uma estrutura narrativa tipicamente convencional (as inserções oníricas nas sequências mais violentas e a cômica “refilmagem” de uma passagem de “Duas Mulheres“, de Vittorio De Sica, conferem personalidade ao filme), o sucesso de “Preciosa” é visivelmente apoiado pela força de seu elenco. As performances femininas, especialmente as de Gabourey Sidibe e Mo’Nique, sustentam a robustez do drama. As coadjuvantes Paula Patton e Mariah Carey, em papéis inusitados, também contribuem para o engrandecimento dessa pequena ode à sublimação dos traumas humanos. Assista “Preciosa” preparado para enxergar novos reflexos no espelho.

Túlio Moreira
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