Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 09 de janeiro de 2010

Sherlock Holmes

Quatro romances originais, 56 contos, 200 filmes sobre o tema, cinco séries de TV, adaptações para o teatro, uma infinidade de programas de rádios e dezenas de exemplares de revistas em quadrinhos depois, o cinema nos apresenta o detetive mais cool da história sobre uma nova ótica. A verdadeira!

Anote aí: Sherlock não é mais sóbrio, não é mais sério e ganhou um corpo definido à base de lutas em pubs decadentes. Da sua antiga fôrma, sobrou o inseparável amigo Watson, a língua mordaz, a lógica afiada e a fama. Essas dualidades misturadas resultam em um Sherlock que chega ao século XXI como deve ser – abusado – e como Guy Richie e seus produtores sempre imaginaram fazer – audaciosamente criativo e lucrativo. O novo “Sherlock Holmes” revoluciona, moderniza e torna ainda mais cool o maior arquétipo das histórias de detetive do mundo.

O longa começa com Holmes (Robert Downey Jr.) e Watson (Jude Law) desvendando uma série de assassinatos sombrios ligados a seitas pagãs. As pistas levam os heróis até Lorde Blackwood (Mark Strong), um homem cheio de segredos e revelações que instigam Holmes a um desafio em que astúcia e força física podem decidir o desfecho de algo grandioso. A Londres vitoriana de 1890 é o pano de fundo da história que revela-se ainda mais interessante quando Blackwood consegue realizar o impensável: voltar dos mortos; levando o detetive a uma corrida temporal, aplicando a lógica em meio a damas misteriosas, relacionamentos em crise, punhos em riste, armas de fogo e muita aventura.

Apesar da história blockbuster, o que conquista em “Sherlock Holmes” são as peculiaridades. Os melhores planos são os abertos, as melhores sequências de ação estão muito bem interligadas e as melhores falas, de todos os personagens, são as de contrastes, principalmente as ditas em tom de briga por Holmes e Watson. A química de Downey Jr. e Law é tão boa que rende momentos ímpares durante as mais de duas horas de filme. A relação de amizade, momentaneamente afetada pela decisão de Watson em casar-se com a jovem Mary Morstan (Kelly Reilly), é pontuada pelas demonstrações de ciúme sarcásticas e cômicas. O contraponto entre os personagens é perfeito não para diferenciá-los, mas para colocá-los no mesmo nível. Em muitos momentos – guardadas as devidas proporções – lembra a impagável dupla Riggss e Murdock, do clássico “Máquina Mortífera” (1987).

Esqueçam os estereótipos seculares formados em torno dos personagens – magro X gordo ou bobão X perspicaz. Foi criado aqui um Holmes moderno, exótico, bagunceiro e cheio de vícios; enquanto Watson é dinâmico, sagaz, sempre fazendo uso da força bruta (e Law o faz de forma a colocá-lo tão essencial quanto Holmes). Outra trama que chama a atenção é a relação de Holmes com Irene Adler (Rachel McAdams, impecável), uma americana charmosa, cheia de segredos, impetuosa e também antiga paixão do detetive.

Sim, a ela Holmes destina o seu lado emocional, desprendido e incontrolável, já que Adler também coloca-se como uma espécie de rival do protagonista. Há ainda a presença marcante do inspetor Lestrade, interpretado por Eddie Marsan (realmente impagável), que dá vida ao grande chefe da Scotland Yard e a quem Holmes nutre um misto de desprezo e admiração; e a atuação refinada de Mark Strong como Lorde Blackwood. Cada personagem tem uma razão de ser e desenvolve com o protagonista sentimentos ambíguos.

Digressões, adaptações e inovações à parte, a verdade é que poucos personagens são tão atemporais como Sherlock Holmes. Adorado por sua ousadia, esperteza e intelecto aguçado, o detetive criado em 1887 por Arthur Conan Doyle dá as caras em pleno século XXI como um homem comum, cheio de vícios e imperfeições, diferente de tudo antes feito. Sherlock foi tão bem construído por seu autor que muitas pessoas acreditam até hoje que existiu de verdade. E foi essa aproximação com a realidade – o urbano e o contemporâneo – que o diretor Guy Richie e o ator Robert Downey Jr. quiseram deixar nítido.

Um Holmes e um Watson de carne e osso? Como? O equilíbrio veio por meio de uma estética e de um comportamento (ou neste caso, mal comportamento), já que o herói de Downey Jr. é beberrão, mulherengo, arrogante e manipulador; e o Watson de Law é charmoso, inteligente e perspicaz. Ou seja, são normais, e por isso mesmo agrada às grandes massas juvenis nada desejosas de ver personagens sisudos e cinzentos.

Guy Richie não é um diretor comum, mas também não é tão excepcional quanto a publicidade à sua volta apregoa. Ele tem um estilo único, frenético, enérgico, solto e, por que não dizer, irreverente e ousado, que realmente fazem a diferença. Ele se repete e não consegue abandonar os trejeitos tão detectáveis em “Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes” (1998) ou “RocknRolla – a Grande Roubada” (2008).

É nas cenas de ação que Richie se destaca, principalmente quando Holmes enfrenta o lutador McMurdo (David Garrick). Sua força física e habilidade lógica são mostradas através da desconstrução da ação e do pensamento do protagonista, em uma sacada muito interessante, aliada à técnica “momento a momento” e à excelente fotografia de Philippe Rousselot (“Nada É Para Sempre”). Cada cena que envolve o ‘físico’ dos personagens parece saída diretamente do “Clube da Luta”, aquele filme onde Brad Pitt e Edward Norton aliviavam a ‘pressão’ do mundo moderno entre sopapos e pontapés.

Quando Joel Silver (produtor) e Guy Richie se juntaram a Downey Jr. e Law para essa nova versão de “Sherlock Holmes”, muitas expectativas foram criadas, mas apesar da bela embalagem e das várias qualidades que apresenta, o longa não vai muito além do óbvio, não surpreende, não deixa os olhos arregalados, não faz rolar uma adrenalina no espectador. É tudo muito rápido, muito belo, muito divertido, muito caprichoso (figurino, fotografia, edição e trilha magistral de Hans Zimmer), mas falta algo para conquistar completamente.

“Sherlock Holmes” coloca-se como aventura e pipoca em estado puro; e é isso que é, nem a mais nem a menos, sem desmerecer. Certamente será uma surpresa para aqueles que são fãs legítimos do detetive, para aqueles que são fãs de ocasião e também para quem nunca ouviu falar no gênio, mas querem descobri-lo.

Debora Melo
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