Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 31 de outubro de 2009

Besouro

Em “Besouro”, o diretor João Daniel Tikhomiroff dá preferência à técnica do que ao conteúdo. Cheio de lutas empolgantes e uma belíssima fotografia, o filme, no entanto, tem uma trama esquecível.

Besouro– Que tal um filme de ação brasileiro? – Brasileiro? Essa costuma ser a reação da maioria do público quando convidada para uma película desse gênero. Para quem não consegue lembrar de nenhuma obra brasileira de ação, é preciso que se apresente “Besouro”, filme baseado na história de um capoeirista negro que viveu em uma época de extrema exploração de pessoas da sua raça. Mas em vez de contar uma trama de opressão e sofrimento, o diretor João Daniel Tikhomiroff adiciona altas doses de lutas estilizadas e crenças mitológicas, gerando um filme bonito para os olhos como nenhum outro já feito por aqui. Entretanto, o cineasta, que já ganhou inúmeros prêmios em Cannes como publicitário, esquece que não basta apenas uma embalagem atraente, tem que ter conteúdo. E isso faz muita falta em “Besouro”. 

A história da película se passa em plenos anos 1920, no Recôncavo Baiano, época e região marcadas por diferenças raciais. Aos brancos fazendeiros e donos de engenho sobravam dinheiro e terras, além de muitas palavras de ordem. Aos negros, a única opção era trabalhar nos engenhos ou, no caso das mulheres, nas casas dos patrões. Como alternativa para entretenimento, eles jogavam capoeira, dança que, devido a sua semelhança com uma luta, não era de agrado dos fazendeiros que fosse praticada por muitas pessoas. O mestre da dança na área era Mestre Alípio (Macalé), que ensinou os segredos da capoeira aos amigos Quero-Quero (Anderson Santos) e Besouro (Ailton Carmo). Ameaçado de morte pelos poderosos, Alípio é protegido pelo mais talentoso dos dois, Besouro, cuja única falha do garoto leva ao assassinato de seu mestre. 

Besouro passa então a ser o nome caçado pela região. Influenciado pelo orixá Exu (Sergio Laurentini), ele é instigado a refletir sobre a importância de seus atos, adquirindo diversos poderes, além de um posicionamento de liderança entre os negros. Diversas sabotagens contra os engenhos e canaviais são idealizadas pelo ascendente guerreiro, que passa a ser incessantemente perseguido pelos capangas do Coronel Venâncio (Flávio Rocha). Besouro também se envolve num romance com a jovem Dinorá (Jéssica Barbosa), então namorada de Quero-Quero, ocasionado um conflito passional entre a própria raça. Também guiado pelo espírito de Mestre Alípio, o rapaz deverá descobrir os mistérios para se tornar o herói da região, desafiando o domínio dos brancos. 

Adaptação do livro “Feijoada no Paraíso”, de Marco Carvalho, “Besouro” sai do lugar comum ao se utilizar de uma temática social para criar uma trama de ação. Mas aqui não temos lutas de simples socos e chutes. Estamos diante de um filme que tem como principal marca os seus embates idealizados. Para isso, foi contratado ninguém menos que Huen Chu Ku, coreógrafo de “O Tigre e o Dragão” e “Kill Bill”. Por isso não se impressione se vir alguns personagens voando sobre as águas, pulando entre as árvores e dando golpes monumentais. No entanto, tudo faz parte do universo mitológico no qual o longa está inserido. Diversas entidades da crença afro-brasileira constituem a trama do filme, possibilitando que o sobrenatural aconteça, mas que, mesmo assim, pareça estranho aos olhos de vários, principalmente os brancos. 

Complementando o alto padrão de qualidade técnico da produção, deve-se destacar ainda o competente som de Rica Amabis e a incrível fotografia de Enrique Chediak, que transformam Iguatu (BA), onde as gravações foram feitas, em um local de beleza estonteante, com as suas enormes pedras, sol ininterrupto e riachos cristalinos. À direção de Tikhomiroff, inúmeros elogios também têm de ser feitos. A capacidade do cineasta, em seu primeiro longa-metragem, de realizar uma produção que preza pela estética jamais deve ser questionada. As lutas são bem comandadas e tem ritmo de sobra e a utilização de ângulos de câmera ousados impressionam. Mas para se fazer um filme de qualidade é preciso bem mais. 

É preciso, principalmente, que o longa conte com um bom roteiro, o que não acontece aqui. Assinado pelo próprio Tikhomiroff em parceria com Patrícia Andrade, o argumento é incapaz de contar uma história interessante. O desenvolvimento do personagem principal em direção a se tornar o herói da região é raso e confuso. Mesmo com uma narração em off (às vezes explicativa demais), a fita deixa aqueles que desconhecem as crenças abordadas um pouco perdidos. O contexto histórico também decepciona. O filme parece ter medo de chocar, principalmente ao apenas insinuar e posteriormente ignorar a exploração sexual ao qual as mulheres eram submetidas. Além disso, a importância da capoeira, que deveria ser o foco da película, não é tratada adequadamente.

No entanto, é o triângulo amoroso entre Dinorá, Quero-Quero e Besouro o grande erro do filme. Em meio a uma luta épica por sobrevivência, o roteiro insere a temática de maneira brusca e desnecessária, demonstrando a inocência dos dois escritores ao desenvolverem uma trama histórica. Baseada em desejo e nunca em paixão, o relacionamento entre eles é dos mais infantis, mas felizmente ainda conta com atuações convincentes, em especial de Jéssica Barbosa. O elenco, aliás, até que está bem para uma produção composta por atores desconhecidos. Não há destaques, mas todos fazem o seu trabalho com qualidade. Apenas o protagonista, Ailton Carmo, poderia ter um pouco mais de carisma.

Misturando mitologia com ação, mas esquecendo de todo o resto essencial, “Besouro” é um verdadeiro desperdício de R$ 10 milhões. Entre os diversos patrocinadores do filme (e eles são vários) alguém poderia ter exigido que, além de um coreógrafo renomado e um competente diretor de fotografia, fossem contratados um diretor e escritores que saibam que a arte cinematográfica é muito mais profunda do que uma publicidade de poucos minutos e que entendam que a estética é apenas a cereja do bolo de um filme.

Darlano Didimo
@rapadura

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