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Colunas   quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

The Post – A Guerra Secreta e o papel da imprensa na construção da sociedade

Em época de fake news, "The Post - A Guerra Secreta" retoma o contínuo debate em torno da importância da imprensa na constituição da sociedade.

Poucas coisas foram mais sintomáticas dos atuais tempos políticos do que a escolha da expressão “fake news” como palavra do ano de 2017. Embora não seja um termo novo, com ocorrências desde os anos 1990, sua ressurgência no último biênio demonstra o cabo de guerra que se tornou a dinâmica imprensa-política, e versa sobre o impacto direto que essa relação tem no processo de se moldar a sociedade. Se por um lado esta conjuntura, calcada em Twitter e investigações postadas em fóruns, têm traços contemporâneos, ela se estende desde a invenção da imprensa e, com o lançamento de “The Post – A Guerra Secreta“, há uma janela de oportunidade para se pensar a intrincada relação entre mídia e poder ao longo do tempo, e como esta ligação fundamenta aspectos críticos da coletividade contemporânea.

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Baseado em fatos, o filme narra como a equipe do jornal The Washington Post lutou com as possíveis repercussões da publicação – e da não publicação – do que ficou conhecido como “Pentagon Papers” (os “Papeis do Pentágono”, em tradução livre) antes de publicar o material. Nas mãos da equipe do Post estavam documentos vazados que relatavam o caos e o cenário de derrota que os Estados Unidos causaram e enfrentaram durante a longa Guerra do Vietnã[1], com capacidade de desestabilizar a sociedade estadunidense. Com o conflito em andamento há quase 20 anos, a sociedade se rebelava cada vez mais contra a ideia de enviar seus filhos para morrer em um conflito que perpassara uma geração inteira e parecia não trazer quaisquer progressos concretos para seu país. Se por um lado o Post tinha a obrigação de veicular a verdade, o jornal poderia, ao fazer isso, mudar os rumos da guerra que denunciava.

A questão da (i)legalidade do que o Post decidiu fazer com os “Pentagon Papers” no início da década de 70, conforme demonstrado em “The Post”, vai além da interpretação jurídica que a constituição dos Estados Unidos têm para o caso; isto conversa diretamente com o papel que a sociedade reconhece ou deseja que a imprensa tenha. O que prevalece em um conflito entre o interesse público e o estamento legal? Seria a primazia da lei (que, em conflito interno, protege tanto os segredos de Estado quanto os direitos de publicação da imprensa) ou do interesse da população em seu direito de saber o que está sendo feito com seu dinheiro e, principalmente, com a vida dos seus filhos? Uma batalha é travada entre o Post e a Casa Branca, com o centro do poder dos EUA buscando desacreditar os documentos e, posteriormente, julgar a imprensa por sua ilegalidade. “The Post” – e a história americana – trazem o desfecho deste cenário, mas não tem qualquer sucesso em solucionar o conflito inerente à relação da imprensa com o poder, de forma que se torna uma questão de tempo até que esta tensão volte à tona.

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De pouco tempo, inclusive. “Todos os Homens do Presidente“, de 1976, toma a narrativa histórica exatamente do ponto onde “The Post – A Guerra Secreta” deixa: o presidente Richard Nixon quer impedir o acesso do The Washington Post à Casa Branca, questionando a veracidade e a honestidade do jornal – em outras palavras, acusando-o de ser fake news. Em “Todos os Homens do Presidente”, o longa relata o escândalo de Watergate e a consequente renúncia de Nixon[2]. Novamente o Post é o centro da polêmica, uma vez que seus repórteres Carl Bernstein (Dustin Hoffman, “Os Meyerowitz: Família Não se Escolhe) e Bob Woodward (Robert Redford, “Meu Amigo, o Dragão“) investigam uma história sobre um assalto à sede do Partido Democrata que pode ser mais do que aparenta.

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Como a história viria a provar, Woodward e Bernstein estavam certos: o caso se revelou como um dos maiores escândalos da história dos Estados Unidos, com a comprovação de sabotagens dos republicanos contra os democratas e da implantação de escutas na sede do Partido Democrata para fins de espionagem – com a aprovação do presidente Nixon. Embora no retrovisor pareça um caso óbvio e encerrado, “Todos os Homens do Presidente” faz mais do que ser um filme excelente, mostrando a jornada que os repórteres e editores do The Washington Post tiveram de percorrer para chegar à verdade. O caminho incluiu, mais uma vez, a tentativa de descrédito por parte do governo não só das informações[3], mas da própria credibilidade do Post, como demonstrado em uma declaração do porta-voz da Casa Branca à época, retratada no filme:

“Por que o Post está fazendo isso? Você tem um homem que é o editor do Washington Post chamado Ben Bradlee. Qualquer um que quiser avaliar honestamente quais são suas persuasões políticas irá chegar rapidamente à conclusão de que ele não é um apoiador do Presidente Nixon. Eu respeito a imprensa livre. Eu não respeito o tipo de jornalismo… O jornalismo malfeito praticado pelo Washington Post”.

Em outras palavras: foi o fake news de 1972. Essa tendência é antiga pelo fato de que a imprensa, ao se comunicar com o público, se torna capaz de moldar sua opinião com base na confiança de longo prazo que desenvolve, seja com seus leitores ou com seus espectadores. A maneira como a sociedade enxerga o governo inevitavelmente passa pelas mãos da imprensa, então aos poderes restam três caminhos: aceitar as críticas da mídia e responder com atitudes concretas que visem a melhoria, conquistar a imprensa para que ela ajude a construir a visão que deseja que a sociedade tenha de si ou descreditar os veículos de comunicação para que a sociedade não os ouça. Não é a “imprensa” que é chamada de fake news, por exemplo, mas é a CNN e a MSNBC especificamente, enquanto a Fox News surge em contraste como o último bastião da verdade. Hipoteticamente, claro.

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“The Post” não nasce do limbo, e as coincidências entre a realidade do filme, de início da década de 70, e a atual não se dão de forma acidental, como o diretor Steven Spielberg apontou. O realce da importância de uma imprensa ativa e comprometida que trabalhe com base em fatos e não em opiniões fantasiadas de verdade é tão urgente para a conjuntura atual quanto era 40 anos atrás. De “The Post – A Guerra Secreta” a “Todos os Homens do Presidente”, passando por outros filmes de temática semelhante, como “Cidadão Kane” (1941), “Frost/Nixon”[4] (2008) e “Spotlight – Segredos Revelados” (2015), o cinema também vem lembrar que a imprensa tem um papel além do papel, sendo pedra fundamental da relação que a sociedade estabelece com seus representantes e seus poderes. “The Post” e seus companheiros vêm para rememorar que, em tempos de acusações de fake news e incertezas, ainda há fatos objetivos, e ainda há uma verdade, mesmo que difícil, para ser encontrada.

 

[1] A qual, por sua vez, é conhecida no Vietnã como “Guerra de Resistência Contra a América”.

[2] “Todos os Homens do Presidente” se inicia com a cena que “The Post” termina, de forma que alguns personagens são compartilhados entre os filmes – algo como um Universo Compartilhado do Washington Post?

[3] Segundo o porta-voz da Casa Branca à época: “Eu quero registrar que essa história [sobre a existência de um fundo secreto para sabotagem dos democratas] é completamente falsa. Além disso, quero adicionar que Bob Haldeman [o cabeça do esquema] é um dos melhores servidores públicos que este país já teve e essa história é uma maldita mentira”. Não era.

[4] O qual serve como um ótimo fechamento para esta trilogia sobre a administração Nixon, mostrando o que aconteceu após a renúncia do malfadado presidente.

Erik Avilez
@eriksemc_

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