Cinema com Rapadura

Colunas   segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Um filme de Taika Waititi: a vida é estranha, e ele sabe disso

Um panorama do estilo do diretor neozelandês e a simples arte de ser ingênuo.

“Um filme de Taika Waititi”. Quando os créditos nos informam o diretor que nos trouxe o filme o qual vemos naquele momento, uma onda de familiaridade e expectativa tende a nos atingir: esperamos sangue de Quentin Tarantino (“Os Oito Odiados“), plot twists de M. Night Shyamalan (“Fragmentado“) e reflexões claras de Christopher Nolan (“Dunkirk“), por exemplo. “Thor: Ragnarok“, no entanto, é um filme de Taika Waititi, e a maioria do público não traz uma ideia prévia do que esperar desse diretor-autor e de seu nome dentre os créditos da mais nova empreitada da Marvel Studios. Assim sendo, o Cinema com Rapadura vem falar um pouco sobre quem é Waititi, sua paixão pelo anormal que nos é comum, seus principais trabalhos e no que eles se aproximam ou se diferem de “Thor: Ragnarok”.

“Eu amo o ingênuo”

Taika Waititi nasceu em 16 de agosto de 1975 na cidade de Wellington, na Nova Zelândia. Com experiência como diretor, roteirista e ator, Waititi também trabalhou como comediante na dupla “The Humourbeasts” com Jemaine Clement, ator famoso pela série “Flight of the Conchords” que posteriormente atuaria em filmes dirigidos por Waititi. Envolvido na produção e direção de curtas, Waititi sempre esteve em mais de uma função nos processos criativos de sua filmografia: muitas vezes assinando o roteiro, além de atrás e em frente às câmeras, os múltiplos papéis que Waititi assume em seus filmes faz com que sua visão seja manifesta em diferentes ângulos.

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Este pequeno parágrafo, por mais que pareça estritamente biográfico, traz um panorama eficiente sobre os principais pontos em comum na filmografia do diretor. Com a simplicidade de alguém que precisava por a mão na massa e agora ainda o faz por prazer, Taika Waititi traz suas peculiaridades e estranhezas com naturalidade para seus filmes, construindo a atmosfera ideal para o amor mais importante das suas obras: a ingenuidade.

Se a sua vida denuncia a forma que sua criatividade toma em suas realizações, foi em um TEDx em Doha que Waititi declarou o conteúdo central dos textos de suas obras: em um dado momento, em uma das palestras mais peculiares que o TEDx já exibiu, Taika diz simplesmente “eu amo o ingênuo”. Dentre piadas constrangidas e pinturas favoritas bem curiosas, a atração pessoal do diretor pelo natural é tão clara quanto sua paixão pela estranheza – a qual, em última análise, costuma ser a personificação da espontaneidade. É aí, na intersecção entre o natural e o estranho,  que Taika Waititi se sente mais confortável.

Um dia no slice of life

Estas inclinações ficam claras desde cedo na filmografia de Waititi. “Dois Carros, Uma Noite”, seu curta-metragem lançado em 2004 e indicado ao Oscar de 2005, traz três crianças em dois carros em um estacionamento. Ao longo dos próximos dez minutos, a interação entre as crianças se desenrola, revelando muito sobre suas perspectivas sobre a vida enquanto ainda se mantém sobre diálogos tão naturais que são quase triviais; conhecemos seus personagens não através de grandes eventos em suas vidas, mas em recortes de momentos mundanos de seu dia-a-dia, em um formato que é conhecido como slice of life.

É dentro do slice of life que as estranhezas dos personagens se destacam. É curioso, por exemplo, pensar em “O Que Fazemos nas Sombras”, filme que o diretor lançou em 2014 sobre o cotidiano de um grupo de vampiros que divide uma casa, e notar que a principal informação que nos salta à mente não é o fato de eles matarem pessoas e beberem seu sangue, mas como eles gostam de improvisar música juntos, apesar de todos serem horríveis nisso. Esse traço também é notável em seus outros filmes: em “Loucos por Nada”, de 2007, é nas bizarrices que os separam do resto da sociedade que Lily (Loren Taylor) e Jarrod (Jemaine Clement) se encontram e são capazes de nutrir um relacionamento; em “Boy”, de 2010, o menino homônimo tenta criar histórias para livrar seu pai das consequências de suas ações, enquanto seu irmão acredita ter poderes mágicos e o pai em questão insiste que as pessoas os chamem de “shogun” só porque ele acha maneiro.

Em “Thor: Ragnarok”, a proporção do filme em teoria dificultaria que essa ingenuidade estranha de Waititi se manifestasse; estamos falando de uma produção da Marvel Studios dentro do universo de seus Vingadores e que leva o nome de “fim do mundo nórdico” no seu título. Embora esses tenham sido limitadores, o diretor buscou fazer pequenos recortes simples dentro deste arco grandioso para mostrar o que havia de mundano entre seus deuses e alienígenas gladiadores. Um exemplo claro disso é quando Thor (Chris Hemsworth, “Caça-Fantasmas“) e Loki (Tom Hiddleston, “Kong: Ilha da Caveira) chegam em Nova Iorque e, em um diálogo, Loki afirma que não é um bruxo, ao que Thor pergunta “então por que você se veste assim?”, apontando para a roupa toda preta e o estilo à la Criss Angel do meio-irmão. Uma mostra clara de que Waititi ainda tinha suas tendências afloradas mesmo tendo que trabalhar com o “Padrão Marvel” de produção cinematográfica.

Waititi e a “fórmula Marvel”

Se na estranheza e nos diálogos mundanos “Thor: Ragnarok” se aproxima do resto da filmografia de Waititi, este ponto da escala dos eventos é um que o difere radicalmente dos outros filmes do diretor. Seja no estacionamento de um pub rural em “Dois Carros, Uma Noite”, nos campos neo-zelandeses em “A Incrível Aventura de Rick Baker”, de 2016, ou em um loft mal-cuidado em “O Que Fazemos nas Sombras”, Waititi não tem em seu histórico algo tão grandiloquente quanto uma guerra entre divindades e o fim de mundo que vemos em “Thor: Ragnarok”, de forma que entendendo o estilo do diretor, e antes de assistir ao filme, pode ser difícil enxergar traços autorais de Waititi dentro de uma história tão maior do que ele está acostumado.

Aí se fala muito da “fórmula Marvel”, que inclui o grande evento maléfico destruidor que precisa ser evitado, vilão raso e piadas abundantes, e como isso limita o potencial dos diretores, muita vezes os reduzindo a realizadores da visão do produtor-executivo Kevin Feige e companhia. Embora estas sejam afirmativas discutíveis, é importante apontar que Waititi não se põe como os demais diretores da franquia dentro deste universo, uma vez que sua abordagem é complementar e efetiva dentro do que o estúdio busca fazer.

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Analisando os principais pontos da acusação sobre a “fórmula Marvel”, o grande evento destruidor está em “Thor: Ragnarok” – obviamente. A saída de Waititi para trabalhar da sua forma dentro destas restrições foi na criação de “cápsulas” de vida ordinária dentro da obra de escopo extraordinário: além da valorização dos diálogos como o citado acima entre Loki e Thor, o diretor trabalhou o roteiro de forma a criar situações de embaraço com as quais podemos nos identificar apesar do contexto, dando espaço para improviso dos atores e contemplando seus personagens em takes propositadamente desconfortáveis. Embora a cena em que Thor não consegue falar com o demônio que faz ameaças por causa da posição de suas correntes, por exemplo, tenha um efeito cômico imediato, ela também nos aproxima de um protagonista com o qual seria difícil se identificar – a não ser, é claro, que você possua um martelo mágico e controle sobre raios (se for esse o seu caso, assista Thor com o coração aberto e cuidado com antenas durante chuvas). Para o resto de nós, mortais, essa abordagem de Waititi faz com que seja mais fácil nos importarmos com seu personagem principal.

Quanto ao resto da “fórmula Marvel“, a vilã rasa também está lá, na figura de Hela (Cate Blanchett, “Carol“), aprofundada somente o suficiente para que a trama possa seguir em frente. Ainda assim, nem mesmo ela escapa do Efeito Waititi: ver a Deusa da Morte devaneando e se confundindo enquanto fala com seu lacaio não dá mais personalidade para ela, mas certamente a torna mais aproximável para a audiência através do humor.

É na comédia, inclusive, que Marvel e Waititi entregam um casamento perfeito. O diretor cria os momentos de ordinário para explorar o potencial de absurdo que a interação entre super seres pode ter – e o encontra com sucesso. De certa forma, o diretor aborda “Ragnarok” com a mesma ingenuidade com que realizou “O Que Fazemos nas Sombras”: é simplesmente impossível que estes vampiros/deuses sejam posudos o tempo todo. O que realmente interessa a Taika é esse ínterim, o que está acontecendo fora dos combates mitológicos e dos amores destruidores destas pessoas mais que humanas.

Este é o estilo que Waititi traz, e é exatamente isso que a Marvel Studios tem buscado fazer ao longo de sua história. Desde “Vingadores” e a cena pós-créditos do shwarma até a cena da festa de “Vingadores: Era de Ultron”, passando pela senha do Wi-Fi de “Doutor Estranho”, a comemoração pelo beijo de Steve Rogers em “Capitão América: Guerra Civil” e, principalmente, por todos os melhores momentos de “Homem-Aranha: De Volta ao Lar”, a Marvel tem aperfeiçoado a arte de encontrar o ordinário no extraordinário – a qual vem a ser a especialidade de Waititi.

Esta união não vem sem perdas. Se no humor Waititi está em casa na Marvel, o peso dramático que seus filmes costumam ter e buscam equilibrar em suas narrativas – traços visíveis principalmente em “A Incrível Aventura de Rick Baker” e “Boy” – acaba sendo perdido na trama de “Ragnarok”. Isso se dá em parte porque o roteiro – de onde emana boa parte deste balanço – não foi escrito por Waititi, e também porque simplesmente não há espaço para isso no filme: são muitos arcos, personagens e eventos que precisam ocorrer em um tempo curto, e não há como encaixar, por exemplo, nem mesmo o sofrer pela perda inesperada de um familiar querido. Se Waititi encontrou na Marvel um estúdio que compreende seu humor peculiar, não teve a mesma sorte em relação aos elementos de vulnerabilidade emocional e da reflexão sobre a necessidade humana de companhia que estão presentes em seus filmes anteriores.

 A Incrível Aventura de Rick Baker

É fato que “Ragnarok” não tem o mesmo coração pulsante dos outros filmes de Taika Waititi, mas isso não significa que este não tenha tenha sido um trabalho do autor com sua assinatura. Na verdade, Taika fez mais que um filme para Marvel, mas também um favor em mostrar mais uma vez – como James Gunn e os Irmãos Russo tinham feito anteriormente – que, se de fato há uma fórmula rígida nos bastidores, ela não inabilita o diretor a ser ele mesmo em termos criativos na produção de seu conteúdo. Trazendo sua história para contar a do Deus do Trovão, Taika Waititi é capaz de fazer com Thor o que vem sido feito com todos os seus personagens: exibir sob uma luz positiva que todos nós somos inerentemente excêntricos nessas nossas vidas estranhamente comuns, e não há problema nenhum nisso.

E é isso que, em última análise, “um filme de Taika Waititi” significa.

Erik Avilez
@eriksemc_

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