Cinema com Rapadura

Colunas   sábado, 07 de outubro de 2017

Denis Villeneuve é a nova cara da ficção científica nos cinemas?

Falamos sobre a curta, porém meteórica carreira do diretor canadense e especulamos sobre algumas obras que poderiam ser adaptadas por ele.

Dono de uma carreira bastante curta e recente, Denis Villeneuve é considerado um dos diretores mais hypados de Hollywood. Muito elogiado desde seus primeiros trabalhos, o canadense é hoje posto como possível nome para comandar praticamente qualquer produção de grande orçamento do cinema. Mas os últimos trabalhos de Villeneuve mostram uma inclinação do cineasta para filmes de ficção científica. Seria ele o grande responsável por dar ao famoso gênero da literatura o merecido reconhecimento nas telonas? O Cinema Com Rapadura passeou pelos seus trabalhos e traz uma resposta!

Início

Desconsiderando alguns trabalhos menores e participações em alguns filmes, acredita-se que a carreira de Villeneuve começou em 2001 com o longa “Maelström”, dono de uma trama bastante elusiva sobre o ciclo natural da vida. A obra faturou diversos prêmios canadenses  – incluindo Melhor Diretor e Melhor Roteiro, ambos para Villeneuve – e foi exibida em vários festivais ao redor do mundo.

Após quase oito anos de uma suposta “inatividade”, o diretor parecia se preparar para uma ascensão meteórica. Em 2009 lançou “Polytechnique”, filme sobre o feminicídio chocante corrido na Escola Politécnica de Montreal em 1989 e que gerou muita controvérsia sobre a disposição da cidade de reviver a tragédia através de um filme comercial. Apesar da polêmica, o longa foi aclamado pela crítica. Exibido em festivais importantes como Cannes e Toronto, o filme venceu nove Gemini Awards, premiação máxima do cinema canadense.

Um ano depois, usar a palavra “surpreendeu” já não fazia mais jus ao quanto se esperava de Villeneuve desde então. O diretor estreava de fato no grande circuito com “Incêndios”, longa que segue dois irmãos gêmeos após a morte da mãe em uma jornada após descobrirem que possuem outro irmão e que o pai que tinham como morto pode estar vivo. Penoso e angustiante, a obra não tem medo de mostrar a vida dura, misteriosa e, até então, desconhecida da mãe, ignorando as clássicas jornadas de redenção, abordando o tema tabu da violência entre cristãos e muçulmanos no Oriente Médio e causando uma verdadeira pancada nos espectadores. O longa faturou oito Gemini Awards e foi escolhido para representar o Canadá no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. A obra conquistou a indicação, mas acabou sem o prêmio.

Hollywood

Mostrando qualidade em todos os trabalhos anteriores e escolhido pela imprensa americana como um dos diretores para “ficar de olho” no futuro, Villeneuve já estava pronto para o sucesso em Hollywood. E sua primeira produção já foi, de cara, uma das mais lucrativas em toda a sua carreira. “Os Suspeitos” chegou aos cinemas em 2013 com um elenco de peso, composto por Hugh Jackman (“Logan”), Jake Gyllenhaal (“Vida”) e Viola Davis (“Um Limite Entre Nós”), só pra citar alguns. O suspense faturou US$ 122,1 milhões e uma indicação ao Oscar de Melhor Fotografia, além de prêmios em vários festivais.

Na onda de sucesso dos dois filmes anteriores, Villeneuve lançou, também em 2013, “O Homem Duplicado”, adaptação complicada do romance homônimo escrito por José Saramago. O filme está longe de ser ruim, embora seja o de menor nota média entre os trabalhos do diretor. Mas a difícil missão de adaptar o escritor português até rendeu bons frutos: uma atuação novamente brilhante de Gyllenhaal e uma direção competente de Villeneuve foram laureadas com o título de melhor filme canadense do ano de 2014.

Já em 2015, o diretor nos apresenta um projeto bem mais ambicioso. “Sicario – Terra de Ninguém” expõe de forma crua a postura estadunidense de fazer “justiça” a todo custo – neste caso limitada pela guerra contra o tráfico no México, mas sabemos que esse comportamento se estende por muitas outras searas. Apesar de algumas obviedades, o filme constrói uma atmosfera de suspense tão encantadora que prende o espectador do início ao fim. O longa, exibido primeiramente em Cannes, faturou mais de US$ 80 milhões e já tem uma continuação confirmada: “Soldado”, este sem a presença de Villeneuve.

A Chegada da ficção científica

Desde que entrou de fato no mundo hollywoodiano em 2013, o cineasta passou a apenas dirigir seus trabalhos, deixando os roteiros nas mãos de outrem. Também ficou visível sua tendência a dirigir thrillers de suspense. Até que, em 2016, muita coisa mudou quando o diretor lançou o emblemático “A Chegada”. Um filme devagar, com um suspense relativamente leve – especialmente se comparados com as obras anteriores de Villeneuve – e, acima de tudo, complexo. Características marcantes da ficção científica (FC) são claras nesse primeiro trabalho do diretor com o gênero que é, de longe, um dos melhores de sua carreira.

Com uma técnica impecável, o longa herda a trama inteligente e as temáticas reflexivas do conto no qual se baseia, “Story of Your Life” (ou “História da Sua Vida”), do escritor Ted Chiang. Ao tratar a famigerada “invasão alienígena” de uma forma muito original, além de discutir sobre comunicação e linguagem, a história acaba usando esses artifícios aliados ao mistério presente no universo narrado para falar sobre a humanidade em si, algo pelo qual a ficção científica preza, principalmente na literatura. Com atuações fascinantes, especialmente de Amy Adams (“Batman vs Superman”), o filme ultrapassou os US$ 200 milhões em arrecadação e teve oito indicações ao Oscar, transformando-se no sucesso máximo de Villeneuve, que finalmente foi agraciado com a indicação à estatueta de Melhor Diretor, embora não a tenha levado.

Se existia alguma dúvida da capacidade do canadense como diretor, ela foi extinta com “A Chegada”. A mudança de gênero aliada ao arsenal extenso de técnicas cinematográficas de qualidade transformaram Villeneuve num dos cineastas mais cobiçados da atualidade. E coube a ele a missão de comandar a sequência do maior bastião da ficção científica nos cinemas até então: “Blade Runner 2049”. O longa estreou em 05 de outubro, portanto não cabe aqui uma explanação mais profunda dos acontecimentos retratados. Mas você pode aproveitar e ler a nossa crítica do filme ou ler nossa coluna sobre cyberpunk, onde as temáticas do original e da continuação são muito bem abordadas.

Mostrando que a ficção científica parece ser o mote da sua carreira atual, Villeneuve também comandará o remake de outra obra aclamada – porém muito menos que a obra original. “Duna” é o livro de FC mais vendido de todos os tempos, e, sem dúvida, um dos mais renomados, sendo considerado um dos pilares do gênero. É também o livro favorito do próprio Villeneuve, que, não à toa, considera o trabalho como o “projeto da sua vida”. O filme homônimo a ser refeito foi lançado em 1984, com direção de David Lynch (“Cidade dos Sonhos”). Apesar de sequer ter conseguido se pagar com a bilheteria dos cinemas, o longa conquistou uma indicação ao Oscar de Melhor Som, faturado pelo vencedor da noite, “Amadeus”.

Passeando por temas como política, religião e a relação do homem com a natureza, a história tem a fórmula clássica da ficção científica: alegorias sobre a humanidade capazes de nos fazer pensar. O cineasta já mostrou capacidade de tratar com maestria desses assuntos nas telonas. Mas agora que Villeneuve estará a frente do terceiro grande projeto do gênero, o que restará a seguir para o diretor adaptar?

Possibilidades e especulações

Neuromancer, de William Gibson

Case é um cowboy (hacker) que, apesar de ser um gênio do crime cibernético, não é muito sensato. Ao tentar roubar seu próprio patrão, ele acaba sendo descoberto e perdendo a ligação de seu sistema nervoso com a matrix – alucinação coletiva virtual na qual todos se conectam para saber tudo sobre tudo. Sobrevivendo como pode nos subúrbios de Tóquio, ele acabaria se destruindo se não encontrasse Molly, uma samurai das ruas que o convoca para uma missão perigosa, mas que pode proporcionar a Case uma nova conexão com a matrix.

Gibson se utiliza dessa premissa para criar a ideia do que conhecemos hoje como ciberespaço. Porém, diferente da internet, a matrix é uma grande rede onde realidade e ilusão coletiva se misturam de uma forma que, muitas vezes, é quase impossível distinguir uma da outra (sim, você já viu um filme assim).

A grande missão de Villeneuve ao adaptar essa obra seria tratá-la de uma forma original, visto que ela serve de fonte para praticamente tudo que existe sobre cyberpunk e ficção científica em geral da década de 1990 em diante. A seu favor, o livro – e a trilogia do Sprawl como um todo – contam com questões e críticas bastante atuais, assim como reflexões sobre a relação homem-máquina na nossa evolução e se realmente precisamos estar tão conectados como estamos hoje (mesmo o livro sendo de 1984).

A Mão Esquerda da Escuridão, de Ursula K. Le Guin

Genly Ai é um humano da Terra, enviado ao planeta Gethen em uma missão solitária com o objetivo de apresentar a federação interplanetária aos governantes de Gethen e fazê-los se filiar à ela. Nesse universo, existem dezenas de planetas com seres humanos ou humanoides que se unem para trocar informações e enviar emissários uns aos outros, e etc.

O grande diferencial do livro é remover uma noção fundamental nas relações sociais: o gênero. As pessoas no planeta Gethen não têm um sexo definido, podendo mudar de órgãos e de atração sexual dependendo da fase da vida em que se encontram. Como consequência, os gethenianos são uma mistura de homem e mulher, com suas posturas, emoções e atitudes fundidas, dilema mostrado através da dificuldade de Genly, um homem heterossexual, em lidar com esses seres.

Este livro possui uma leitura bastante aprazível e é uma daquelas ficções científicas que não exagera nas especificidades e nas tecnologias inexistentes. É, como toda boa FC deve ser, uma obra sobre pessoas. Para levar este conceito ao cinema, não basta usar atores de visual andrógeno. Seria preciso uma atmosfera onde o conceito de gênero fixo não existe. E este ambiente precisaria ser verossímil tanto para os personagens quanto para o público, que teria que entender e aceitar essa mudança de paradigma. Seria, sem dúvidas, um dos maiores desafios de Villeneuve nos cinemas.

A Máquina do Tempo, de H.G. Wells

Um grupo de homens renomados – médico, jornalista, advogado, etc. – são reunidos para um jantar à convite de um conhecido, chamado apenas de “O viajante do tempo”. Este último explica que construiu uma máquina capaz de se mover pela quarta dimensão, a dimensão do tempo. Os convidados se mostram incrédulos a respeito do que acabaram de escutar, assim, o viajante resolve provar, viajando para o futuro e voltando para contar o que viveu. Chegando ao ano 801.702, o viajante no tempo entra em contato com um novo mundo e com uma nova espécie humana, dividida em dois segmentos: os pacíficos Eloi e os temidos Morlocks. Convivendo com os Eloi, ele irá refletir sobre os avanços da ciência e da tecnologia e tentará entender o que levou a humanidade a chegar àquele ponto.

Esse é o primeiro livro de H.G. Wells, considerado por muitos como o criador da literatura de ficção científica moderna. Este é considerado também o primeiro livro a tratar a viagem no tempo como tema principal, algo que faz sucesso até hoje. A própria obra já foi adaptada duas vezes para o cinema, uma em 1960, relativamente fiel ao original, tomando algumas liberdades para acelerar a trama, e outra em 2002, onde ocorreram bastantes alterações, que acabam não fazendo jus ao excelente livro.

Apesar de publicado em 1895, o livro é mais atual do que nunca, discutindo a segregação social e como uma classe mais abastada depende de outra para manter seus privilégios e facilidades. Após vermos Villeneuve adaptar tão bem uma história original sobre invasão alienígena, por que não esperar algo igualmente grandioso de outro tema tão conhecido como a viagem no tempo?

Guerra do Velho, de John Scalzi

“No meu aniversário de 75 anos fiz duas coisas: visitei o túmulo da minha esposa, depois entrei para o exército”. Como não se interessar por uma premissa como essa? Mesmo no futuro não especificado onde a obra se passa, ninguém espera que essa seja a idade indicada para o alistamento militar. A trama segue despedida de um homem da Terra, já que, uma vez alistado, ele nunca mais poderá voltar, e mostra os contratempos dele e de um grupo de personagens, todos idosos, nas Forças Coloniais de Defesa.

Por vezes a obra lembra e muito o clássico Tropas Estelares, de Robert A. Heinlein. Ele pode facilmente ser classificado na categoria mais light da ficção científica, afinal, há extraterrestres, naves, batalhas (todas muito bem descritas) e tecnologia. E, decerto, o livro não será aquele que vai te fazer ponderar por horas sobre o sentido da vida, embora possua algumas passagens que podem gerar boas reflexões.

Mas, por acabar trazendo questionamentos inéditos a temas como a guerra, o passado, a vida e a perda, o livro apresenta um ótimo material para Villeneuve trabalhar, capaz de agradar o público variado, sem perder a essência característica do gênero.

Mass Effect, desenvolvido pela Bioware

A saga começa em 2183, após a humanidade ter descoberto um fenômeno físico e espacial que permite viajar a longas distâncias pela galáxia. Este fenômeno acabou levando a humanidade a se deparar com outras raças pelo cosmo. O jogador assume o papel do (a) Comandante Shepard em missões que tentam evitar a destruição de todas as formas de vidas orgânicas pela raça dos Reapers.

A série de jogos de RPG de ficção científica tem sido um grande sucesso de crítica e vendas. Considerada uma das melhores novas franquias desta geração, a propriedade intelectual conta com uma trilogia original, além de jogos spin-offs, livros e quadrinhos publicados.

Ambientado no gênero de space opera, provavelmente é o menos deep sci-fi dentre os citados. Mas todos sabemos que nem só de obras pesadas e complexas vive a carreira de um diretor de renome. Usando a aventura como mote principal, aliada a temas presentes na série como liberdade de pensamento, vigilantismo e intolerância, tanto de alienígenas para os seres humanos, quanto vice-versa, seria possível que Villeneuve consiga, de uma só vez, lançar um filme interessante, que contenha reflexões e ainda expurgue de vez o fantasma das adaptações de games para o cinema.

Uma história original do próprio Villeneuve

O grande trunfo da ficção científica é a possibilidade de extrapolar não apenas conceitos tecnológicos, mas sim todo o seu envolvimento com questões sociais e demais campos de estudo. Uma boa história de FC usa a tecnologia, os alienígenas ou a viagem no tempo como artifício para explorar a psique humana.

Apostar na possibilidade de Villeneuve escrever uma trama original é jogar contra as chances, visto que, como citado anteriormente, o diretor há muito apenas dirige seus trabalhos. Mas, quem sabe, algum roteiro de Black List, algum roteirista inspirado ou, até mesmo, a relação entre o canadense e o gênero se desenvolvendo e perdurando não possam acabar gerando uma história que marque a ficção científica para sempre? Como diria o outro, sonhar não custa nada.

Agora é a sua vez, caro leitor. O que acha da carreira de Denis Villeneuve? Já viu “Blade Runner 2049”? Quais suas expectativas para “Duna”? Tem outra obra em mente que poderia ser adaptada pelo cineasta? Deixe um comentário para nós!

Martinho Neto
@omeninomartinho

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